quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

VESTÍGIOS

“L’atelier du forgeron derrière la Douane”, o ateliê do ferreiro atrás da aduana em Saint John, New Brunswick, Canadá, sem identificação da família, do fotógrafo nem a data, possivelmente entre 1880 e 1890. Fonte: Wikipedia.
 
Quem foi o primeiro ferreiro? Não se sabe. Porém, há pistas preciosas.

 
“O emprego do ferro é extremamente raro antes do II milênio. Atualmente se conhecem somente 14 vestígios de objetos de ferro que remontam a um período anterior ao IV milênio. Provêm de apenas quatro sítios: Samarra, no Iraque, de onde foi extraído o mais antigo objeto conhecido, datado de cerca de 5000 a.C.; Tepe Sialk, no Irã; El Gerzeh e Armant no Egito. Com exceção do objeto de Samarra, cujo ferro é produto de uma redução, o que é considerado uma anomalia pelos arqueólogos, os demais objetos são de ferro meteórico. O III milênio não é muito mais rico em vestígios: alguns objetos de ferro em Uruk, em Tell Asmar, em Ur e em Chagar Bazar, no Iraque; em Alaça Höyük e em Tróia, na Turquia; na pirâmide de Quéops, em Gizé; em Abidos e em Deir el-Bahari, no Egito” (fonte: Michel Rival in As Grandes Invenções da Humanidade, v. 1, editora Larousse, São Paulo, 2009, p. 70).

 
Essa raridade fez do ferro um metal precioso, associado a outros materiais raros na época, como o ouro, a ágata ou a cornalina, para fabricar jóias ou objetos cerimoniais. Segundo Rival, “a crer num texto acadiano do século XIX a.C., o ferro custaria então oito vezes mais caro que o ouro. Homero faz eco a essa raridade do ferro na idade do bronze numa passagem da Ilíada em que um bloco de ferro é oferecido como troféu ao vencedor de uma prova de atletismo” (p. 70).

 
A referência a Homero encontra-se no penúltimo canto da Ilíada, o XXIII, onde Aquiles e os guerreiros gregos fazem honras ao funeral de Pátroclo. Uma dessas homenagens são os jogos. Dos diversos prêmios ofertados por Aquiles (versos 260 em diante), a bela escrava, caldeiras, cavalos, bois, lá está um bloco de ferro luzente (ou “ferro sidéreo-cinza”, na maravilhosa tradução de Haroldo de Campos). No verso 826, Aquiles apresenta este “globo grosseiro de ferro” e em seguida (versos 831 em diante), ele diz: “Que se apresentem, agora, os que a prova tentar desejarem. Para cinco anos terá provisão suficiente de ferro quem conquistar esse globo; e se longe seus campos ficarem, nunca há de ferro faltar-lhe, sem ver-se obrigado a incumbência dar a um dos homens, colono ou pastor, à cidade ir comprá-lo” (fonte: Ilíada de Homero, na tradução de Carlos Alberto Nunes para a editora Ediouro, Rio de Janeiro, 2001, p. 521. A tradução de Haroldo de Campos está na edição da editora Arx, São Paulo, 2002, p. 403).

 
Bem antes disso, no início da Ilíada, canto IV, lá está a aparição magnífica do ferreiro em meio aos guerreiros, um guerreiro muito especial, um guerreiro raro. Trata-se do diálogo de dois irmãos, Menelau, ferido, e o rei Agamémnone. Diz Menelau:

 
“Ânimo, irmão! Não consternes, sem causa, os guerreiros Aquivos. 
A seta, agora, não deu em lugar perigoso, porque antes
foi pela malha detida, a couraça de aspecto brilhante
e o cinturão, que o bronzista forjou com bastante perícia”
Fonte: tradução de Carlos Alberto Nunes, p. 123.

 
O bronzista forjou. Homero poderia ter parado nesta frase que já seria uma obra-prima. “O bronzista forjou”. Sensacional! Aquiles tem nome, Menelau tem nome, Agamémnone tem nome. O bronzista não tem nome. Ora, o que seria do guerreiro grego de nome sem este bronzista forjador sem nome? Nada seria. Fazedor de couraças, tecedor de malhas, urdidor de cinturões. O ferreiro forjou. O Ferrari. Nasceria aí um novo nome.

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