quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

MARCO

Zocca vista de Montecorone, uma de suas regiões. Fotografia de Primo Masotti em 14 de dezembro de 2011.

Em 1º de novembro de 1802 nasceu Marco Giovanni Ferrari em Rosola [se pronuncia Rósola ou Róssola], região de Zocca, província de Módena. Filho de Giambattista Ferrari e de Anna Ugolinni. Quarenta e seis anos depois, em 1848, ele seria o pai de Valentino Cesare Ferrari que, por sua vez, cinquenta e um anos depois, em 1899, seria o pai de Mario Ferrari. Foi aqui, neste berço de montanha, de névoa e à beira do rio Panaro, que tudo continuou. 

 

Mapa de Zocca e arredores, porém ainda não mostrando Rosola. Fonte: Comunità Montana Appennino Modena Est, no site http://www.turismo.montana-est.mo.it/sentieri/carta3.htm, consultado em 29 de fevereiro de 2012.


Rosola, região de Zocca, pertinho do rio Panaro. Fonte: Comunità Montana Appennino Modena Est, no site http://www.turismo.montana-est.mo.it/sentieri/carta3.htm, consultado em 29 de fevereiro de 2012.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

AGITATORE DI UOMINI

“Nós éramos acordados de manhã pelo som dos martelos. Meu pai era ao mesmo tempo gerente, designer, vendedor e datilógrafo de sua firma.”

Enzo Ferrari a respeito de seu pai, Alfredo Ferrari, dono de uma fábrica de peças de metal em Módena, Emília-Romanha, na 264 via Camurri, ao lado da ferrovia, sua principal cliente. Alfredo veio de Carpi, alguns quilômetros ao norte de Módena. Sua esposa Adalgisa Bisbini veio de Forli, pela via Emilia, para se casar com ele. Enzo nasceu em 1898. “Quem sou eu neste mundo?”, costumava perguntar. E para quem pensava que as Ferraris tinham sido desenhadas pelo homem chamado Ferrari, ele respondia: “Eu não sou designer. Outras pessoas fazem isso. Sono um agitatore di uomini. Sou um agitador de homens”. Um Ferrari.

Fonte consultada: “Enzo Ferrari” de Richard Williams. Londres: Yellow Jersey Press, Random House, 2001, pp. 7-12.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

NOTÍCIAS DA ROMANHA

Anúncio da exposição de Telemaco Signorini (1835-1901) in La Repubblica, 2 de outubro de 2009. Trata-se de um detalhe de sua obra-prima “L’alzaia” [o canal da ribanceira], pintada em 1864. Ela mostra o trabalho de cinco homens puxando uma barca pesada de carvão contra a corrente ao longo do rio Arno, perto de Florença.

Dante Alighieri Ferrari não nasceu na Emília-Romanha, mas nasceu ali, vizinho a ela, grudado a ela, sob sua influência, à sombra e à névoa dela – em suma, um romanhês de coração, um emiliano agradecido – basta verificar que no momento mais difícil de sua vida, o exílio, foi nas terras da Emília-Romanha que encontrou abrigo, cuidado e proteção, passando, por exemplo, pela cidade universitária de Bolonha e permanecendo mais tempo em Forli. Mas foi na Romanha que Dante também viu no que sua querida Itália tinha se transformado:

 “Ah! Serva Itália, morada das angústias, nau sem piloto em mar tempestuoso, imperial outrora, lupanar agora!” (Purgatório, canto VI)

Já no Inferno, um espírito desgraçado quer saber se há paz ou guerra na Romanha. E Dante, com pesar, escreve:

“Ó alma que sob chama tão forte está reclusa, fica sabendo que a tua Romanha jamais uma hora sequer gozou de paz no coração dos tiranos que a oprimem. Mas não está, agora, em guerra declarada. Ravena continua como há muito sob as garras da águia de Polenta [Guido Novello da Polenta], a qual também sobre Cervia estendeu as asas. A terra outrora mártir e gloriosa – Forli - , que também aos franceses causou enormes danos, definha sob as garras do leão verde [alusão a Sinibaldo Ordelaffi, tirano de Forli]. E tanto o velho quanto o novo mastim de Verruchio, que Montagna liquidaram [Malatesta e Malatestino, pai e filho, cruéis senhores de Rimini, que derrotaram, aprisionaram e assassinaram a Montagna dei Parcitati, chefe gibelino], conservam igual sanha no morder, mau governo fazendo onde ainda se sustentam. As cidades banhadas pelo Lamone e pelo Santerno [cidades de Faenza e Ímola, dominadas na época por Maghinardo Pagani, o qual exibia no escudo um leão azul em campo branco] são governadas pelo “Leão do Ninho Branco”, o qual muda de partido a cada inverno; e aquela outra cidade de que o Savio banha o flanco (Cesena), assim como se ergue entre os montes e planura, também alterna entre opressão e liberdade” (Dante Alighieri in Inferno, canto XXVII. São Paulo: Abril, 1994, tradução de Hernâni Donato)

Guerra, garras, tiranos-cachorros, tiranos-águias, tiranos-leões, muita opressão, pouca liberdade. Nau sem piloto, morada das angústias, não uma só, mas aos borbotões, às toneladas. No exílio de sua amada Florença, em solo Emiliano-Romanhês, Dante transforma a angústia em letra, faz do mar tempestuoso morada e oficina. O martelo deste ferreiro se faz ouvir. Eterno.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

NÉVOA

“Amarcord nº 2”, pintura de Emanuela Lucaci. 

“pois a névoa, eu a trazia dentro de mim.”

Umberto Eco Ferrari in A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 95.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

OUTRO

Fellini por Tazio Secchiarioli durante a filmagem de “8 ½”.
 
Federico Fellini Ferrari nasceu em Rimini, na Emília-Romanha, em 1920. Com martelo e bigorna, na forja, ele fez o retrato mais lindo da Emília-Romanha, um filme chamado “Amarcord” [“Io mi recordo”, “eu me lembro”]. É uma obra tão atordoante, tão cheia de vida, tão desconcertante, que é como se ele tivesse alterado para sempre o modo como se pode falar da Itália, pensar a Itália, viver a Itália. “Amarcord” é um espelho e é ao mesmo tempo um farol que penetra no meio da escuridão, revelando o velado, dando lugar ao tapado, o feio e o maravilhoso de uma cidade à mostra, de uma família a céu aberto, aquela de cada um. A cena da névoa sobre a cidade é de uma beleza inesquecível. Como filmar a névoa? Fellini fez. A Emília-Romanha está ali. Fellini des-nevoou-a para sempre. Ele fez? Palavras do ferreiro:

 
“Quando acontece de eu rever sem querer um filme que fiz, coisa que não faço a não ser desse jeito, ou ver uma fotografia dele ou um pedaço mostrado na televisão, muito frequentemente eu me pergunto subitamente, “mas quem fez isso?”. Desde o primeiro momento em que começo a trabalhar em um filme, sou habitado por um obscuro morador, um morador que eu não conheço e que prende as cordas da lona [do circo]. Ele faz tudo por mim. Eu só coloco à sua disposição a minha voz, o meu conhecimento de artesão, as minhas tentativas de sedução, de plágio ou de autoridade. Mas é o outro verdadeiramente quem faz, esse outro que eu convivo mas que não conheço de forma direta, só de ouvir falar”.

 
Fonte: depoimento de Fellini na abertura do magnífico documentário francês “Fellini, je suis um grand menteur” [Fellini, ‘eu sou um grande mentiroso’] do diretor canadense Damian Pettigrew, realizado em 2002.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

LA STRADA

Mapa das principais estradas romanas, entre elas a Via Emília, entre as cidades de Ariminum (Rimini) e Piacenza. Fonte: Wikipédia.

Conhecida pelos romanos, que vieram depois dos etruscos, dos celtas e dos sabinos, como “regio VIII” (8ª. Região), assim batizada pelo imperador Augusto quando ele dividiu a Itália antiga entre regiões, pela falta de um nome unitário que pudesse juntar o mar Adriático, os montes Apeninos e o vale do rio Pó, a futura região Emília-Romanha nasceu múltipla, nasceu dividida, nasceu partida já no nome.

Em 268 a.C., os romanos construíram a primeira colônia do Norte, Ariminum (atual Rimini). Logo a seguir surgiram Bononia (atual Bolonha), Mutina (atual Modena) e Parma. Mais tarde, Vignola. O cônsul Marco Emílio Lepido, partindo da via Flaminia, que ligava Roma a Rimini, abre a estrada de Rimini a Piacenza, a via Emilia, em modesta homenagem a seu nome de família. Já o nome Romanha indica o nome do Império Bizantino ou Império Romano do Oriente na época, Romania, que tinha na cidade de Ravena a capital da parte italiana deste Império. Um parêntese sobre o modo como o inconsciente reescreve a história. Ao ler “Romania”, li “Romênia”, e acreditei durante um bom tempo que a Emília-Romanha estava ligada aos romenos, uma forma linda de resolver o problema dos ciganos, os “rom”, que vivem hoje perseguidos também por muitos emilianos e romanheses. Ora, estava tudo indo bem até me deparar com o fato estraga-prazeres de que “Romania” não tem nada a ver com “Romênia”, mas sim com o nome do Império Romano do Oriente. Nada a ver? Romênia foi assim nomeada em homenagem a...Roma, pois ela era também uma província do Império Romano. Querendo sair de Roma, Roma não quer sair de mim.

Terra do mar, terra das montanhas, terra dos rios – a terra-mar, a terra-rio, a terra-montanha dos Ferrari. A Emília-Romanha é nosso berço, o quinhão italiano de nossas raízes, a parte que nos cabe desses primeiros ferreiros, primeiros Ferraris que ali transmitiram o fogo da vida – a chama, de chamado, a chama, de nomeação, a chama do entusiasmo, a chama da inspiração, a chama da respiração, a chama.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

AMOR

Roma. Fotografia de Massimo Zini em 13 de fevereiro de 2010.

Primeiro em seus sonhos, depois nos arredores sem conseguir entrar. Foi só em 1901, após publicar sua obra-prima, A Interpretação dos Sonhos, que ele foi, auxiliado por seu irmão, andar pela cidade. Ferreiro-estrangeiro que era, percebeu que havia encontrado sua morada.

“Como muitos setentrionais entrando pela primeira vez em Roma – como Gibbon, Goethe, Mommsen -, ele vagueou envolto num encantamento deslumbrado. A Roma cristã o perturbou, a Roma moderna pareceu promissora e simpática, mas foi a Roma da Antigüidade e do Renascimento que lhe deu alegria, enquanto atirava uma moeda na fonte de Trevi, deleitava-se entre as ruínas antigas, detinha-se fascinado diante do Moisés de Michelangelo. A visita, disse ele claramente, sem nenhuma hipérbole, foi um “ponto alto” em sua vida.” -  Fonte: Peter Gay in Freud – Uma Vida para Nosso Tempo. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p. 137.

Quase trinta anos depois, com martelo e cinzel, ele transformou esse encontro em teoria. Ele decidiu pagar sua dívida para com Roma, a cidade-esfinge que o fez decifrar na própria carne o enigma da existência, aquilo que chamou de inconsciente. Pagamento de ferreiro.

“Façamos agora a fantástica suposição de que Roma não seja a habitação de seres humanos, mas um ser psíquico com um passado de análoga extensão e riqueza, um ser, portanto, em que nada do que uma vez aconteceu tenha se perdido, em que ao lado da última fase de seu desenvolvimento todas as anteriores ainda continuem existindo. Isso significaria para Roma, portanto, que os palácios imperiais e o Septizonium de Sétimo Severo ainda se elevariam em sua antiga altura sobre o Palatino, que o Castel Sant'Angelo ainda ostentaria em suas ameias as belas estátuas que o adornavam até o cerco dos godos etc. Mais ainda, porém: no lugar do Palazzo Caffarelli, sem que fosse necessário demoli-lo, estaria outra vez o templo do Júpiter capitolino, e não apenas em sua última forma, como o viam os romanos do tempo dos césares, mas também nas mais antigas, quando ainda tinha aspecto etrusco, e era ornamentado com antefixas de argila. Onde agora está o Coliseu, também poderíamos admirar a desaparecida Domus aurea de Nero; na Praça do Panteão, encontraríamos não apenas o Panteão atual, tal como este nos foi legado por Adriano, mas também, sobre o mesmo terreno, a construção original de M. Agripa; o mesmo solo, inclusive, sustentaria a igreja Maria sopra Minerva e o antigo templo sobre o qual foi construída. E para evocar uma ou outra dessas vistas, talvez bastasse apenas que o observador mudasse a direção de seu olhar ou o posto de observação.”

Sigmund Freud em “O Mal-Estar na Cultura” (1930). Porto Alegre: L&PM ed., 2010, pp. 52-53. Tradução do alemão de Renato Zwick.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

ROMA

Louis Armstrong  e sua esposa Lucille Brown diante do Coliseu em Roma, de Vespa. Fotografia de Slim Aarons em 1949.

Roma, a prosa do mundo para Hegel. A Roma da lenda de Enéias, o troiano, de Rômulo e Remo, amamentados por uma loba, que fizeram construir a Roma Quadrata, primeira fortificação da cidade, o rapto das mulheres sabinas, a fundação oficial da cidade em 750 a.C., os patrícios e os plebeus, a muralha de Sérvio Túlio, que compreendia as sete colinas de Roma, o Palatino, o Aventino, o Capitolino, o Celiano, o Esquilino, o Viminal e o Quirinal, o fim da monarquia e o nascimento da república, as Doze Tábuas da Lei, a conquista da Itália, simbolizada na construção da Via Emilia, uma estrada ligando Ariminum (Rimini) a Piacencia (Piacenza), o fim da República com Júlio César, Otaviano e Marco Antônio, e o início do Império, Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio, Nero, Vespasiano, Domiciano, Adriano. Nessa passagem do tempo, passagem de nomes, um som permaneceu invariável. A batida do martelo dos ferreiros. Na Monarquia, na República, no Império. Poesia.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

MEDITERRÂNEO

“Friso dos Arqueiros” no Departament des Antiquités Orientales, Iran do Museu do Louvre, Paris. Trata-se de um friso decorativo feito de tijolos de vidro policromado que mostra um exército, os homens carregando lanças, arcos e aljavas. Podem ser os guardas reais de Dario I (522-486 a.C.), a quem Heródoto chamou de  “os Imortais” ou podem representar uma imagem idealizada do povo persa.

Os ferreiros se estabeleceram em todas as regiões daquilo que muito depois se chamaria Itália. Do extremo norte ao extremo sul da costa adriática, viveram como Vênetos, Ilíricos, Gálicos, Célticos, Etrúricos, Itálicos, Úmbricos, Picenos, Sabinos, Latinos, Ligúricos.  Uma das explicações para isso: a guerra.

“Entre os séculos IX e VIII a.C. desenvolveu-se um intenso intercâmbio de pessoas, bens e ideias por todo o Mediterrâneo. Esse crescimento progressivo da integração entre as costas do “mar interno” foi causado, sobretudo, pela necessidade dos impérios guerreiros do Oriente Médio de obter uma matéria-prima preciosa, o ferro. O uso do ferro difundiu-se então pelo Mediterrâneo, assim como o de outras inovações técnicas de grande importância: a arquitetura em pedra, as construções monumentais, a escultura em três dimensões, o relevo, a pintura, a fabricação de artigos de bronze e, de modo geral, o uso de metais preciosos, assim como da escrita alfabética e do cavalo de guerra. Não é fácil ter noção do que isso representou na época, uma verdadeira “revolução industrial” sem indústria.”

 
Fonte: Norberto Luiz Guarinello em Cidades-Estado na Antiguidade Clássica in História da Cidadania de Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsy (org.). São Paulo: Contexto, 2003, p. 31.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

NUMA NOITE DE SETEMBRO

Volterra, Itália. Fotografia de Mark Citret em 1998.

“Partindo dali e caminhando por três dias em direção ao levante, encontra-se Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas lajeadas de estanho, um teatro de cristal, um galo de ouro que canta todas as manhãs no alto de uma torre. Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades. Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa noite de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as lâmpadas multicoloridas se acendem juntas nas portas das tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de uma mulher que grita: uh!, é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes.”

 
Ítalo Calvino in As Cidades Invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 11.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

CARDO


A flor do cardo. Fotografia de Fir0002 in flagstaffotos.com.au

No jardim das plantas, das flores, das folhas, da vida, o cardo. A primeira planta a florescer na primavera, é o nome comum que recebem distintas espécies da família das flores compostas (Asteraceae). São espécies de folhas compostas e fruto espinhoso. Há espinhos nas folhas, no talo. Sobre os espinhos, há uma linda lenda que associa esta planta ao pastor Dafne, da Sicília, que, ao morrer, foi homenageado pela Terra, cheia de dor, com uma planta cheia de espinhos, os cardos, um espinho para cada dor, o trabalho de luto da Terra. São também por isso conhecidas como cardo estrelado. Dentre eles, muitos são comestíveis, principalmente os do gênero Cynara. Ali está a alcachofra (Cynara scolymus). Outra espécie, a cardunculus flavescens, é usada na fabricação do queijo. Não se sabe muito bem por que, talvez pelas pontas dos espinhos, esse nome também foi empregado no planejamento urbano do Império Romano. Denota uma rua com orientação norte-sul em um acampamento militar ou colônia. O cardo principal é o Cardus Maximus, que se cruza perpendicularmente com o Decumanus Maximus, a outra rua principal. Ali o fórum se situava e se destinava inicialmente às atividades mercantis, feiras livres e mercados e mais tarde às atividades políticas e administrativas. Por isso, as cidades romanas posteriormente começaram a criar praças públicas na intersecção do Cardus Maximus com o Decumanus Maximus. Parece que esta palavra teve origem na linha que os áugures traçavam de norte a sul quando realizavam auspícios – daí que desta palavra teriam se originado os termos “pontos-cardeais” ou pontos-cardo-ais. Nome de flor, nome de espinho, nome de uma alegria, nome de uma dor, nome cheiroso, nome comestível, nome do norte, nome do sul, nome do leste, nome do oeste, nome de família, Cardoso, sobrenome de mulher, a minha, nome do amor, nome de filho, Ricardo, nome florescente, nome do desejo. Cardo.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

JARDIM

Hércules colhendo os pomos de ouro no Jardim das Hespérides, em seu último dos doze trabalhos. Mosaico na cidade de Liria, Valência, Espanha, c. 201 e 250 d.C. Fotografia de Luis García in Wikipedia.

Para os gregos, Esperia. Essa nova terra, novo mundo, terra magna, Magna Grécia, essa América-antes da América queria dizer Hespérides, deusas primaveris.  Para os gregos, essa terra nova situava-se no além, em um Ocidente longínquo, estranho, não-grego – e aí o desafio de ocupá-la, tornar conhecido o desconhecido, fazer a travessia do impossível. Então eles batizaram essa nova terra de  Esperia. As deusas Hespérides, na mitologia grega, são filhas da Noite e da Escuridão, personificam a luz da tarde e o ciclo do entardecer. São elas Egle, “a radiante”, a deusa da luz avermelhada da tarde, Erítica, “a esplendorosa”, a deusa do esplendor da tarde e Hespéra, “a crepuscular”, deusa do crepúsculo vespertino. Além das deusas, há as ninfas Hespérides, ninfas do poente, que tinham o dom da profecia e da metamorfose. São elas Aretusa, Hespéria, Hespéris, Egéria, Clete, Ciparissa e Cinosura. Elas eram as donas do jardim das Hespérides, o mais belo da Antiguidade, o jardim dos imortais, pois continha um pomar que abrigava árvores mágicas de onde nasciam os pomos de ouro, considerados a fonte da juventude eterna – quem diria que esse tema, esse mito iria retornar, iria se encarnar séculos depois, na Idade Média, na famosa Terra da Cocanha, uma espécie de paraíso perdido revisto e atualizado na época? Mas não era fácil chegar ao jardim – havia que atravessar a gruta das Gréias e a gruta das Górgonas. O próprio jardim era povoado de monstros, como um terrível dragão de cem cabeças. Há relatos de que apenas dois mortais, dois heróis, conseguiram entrar neste jardim e sair dali vivos: Perseu, quando foi ali enfrentar Medusa, e Héracles ou Hércules, em um de seus doze trabalhos. Esperia, Hespérides, Itália. Um jardim perigoso, um jardim maravilhoso, um jardim das árvores mágicas, um jardim das Górgonas, a vida e a morte juntas. Eros e Tânatos no jardim.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

AMANHECER

“Estrangeiros em todos os lugares” de Claire Fontaine. 
 
Ninguém sabe ao certo de onde se originou o nome Itália. É evidente aqui como o inconsciente de cada historiador, de cada linguista, de cada pesquisador se revela sem querer se revelar. Para alguns, carentes de uma linhagem nobre, monárquica, Itália vem do antigo e nunca encontrado rei Italo, que teria vivido dezesseis gerações antes da guerra de Tróia e teria sido rei do povo dos Enotri. Para outros, dotados daquele humor e ironia maravilhosos que tão bem caracterizam o italiano, a origem não é real, ela é animal. Eles localizam em um antigo povo do sul, os oscos, a palavra “vitluf” (bezerro) e “vitellus” (bezerrinho) e moedas da época com a imagem de um touro jovem “vitalos” e que, segundo eles, em pouco tempo teria se convertido em “ítalos”. Novos pesquisadores trouxeram ao debate a origem africana do nome, originada dos Taliani, gente oriunda de uma cidade africana chamada Tala. Mas aí, pedir a um italiano que se identifique com um africano parece demais. Então chegaram os pessimistas, para quem essa busca nunca chegará à verdade, pois ninguém sabe a qual língua pertence o nome Itália. Ora, na minha versão preferida, surge a etimologia grega. Ela declara que o nome se origina da palavra grega Aιθαλία (Aithalìa), cuja parte inicial Aith- remete às palavras gregas que se referem ao fogo. Daí uma dedução elementar: foi de um ferreiro grego esta definição. Só pode. Por generosidade, acrescento os que discordam e dizem que isso seria uma referência à dimensão vulcânica das terras da península, tendo em vista que o vulcão Etna em grego antigo se diz “Aitna”. Ainda sobre os gregos, antigos conquistadores imperialistas da parte sul da Itália, o que ficou conhecido como Magna Grécia, a Grande Grécia, essas terras eram chamadas de Esperia, “terra do pôr do sol”, porque, em comparação com a terra-mãe deles, a Grécia, que ficava no Oriente, onde o sol nascia, a Itália para eles era o Ocidente, onde o sol caía. Esse era um jeito elegante de um grego dizer: fora da nossa terra, só existe a barbárie, a noite do mundo. Bárbaro aliás, é uma palavra que em grego quer dizer todo aquele que não sabe falar a língua grega, e por isso a balbucia. Bom, coube a esses balbuciadores demonstrar que de uma noite se pode fazer um amanhecer.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

ESTRANGEIRO

Imigrantes africanos em um barco próximo a Lampedusa, na Itália. Fotografia de Antonello Nusca, AP in El País, 8 de março de 2011.

E o fogo se alastrou, e o meteorito caiu, e o resto de ferro existiu, e a jazida foi aberta. Da garganta de Olduvai, não dos rins, não da cabeça, mas da garganta, aparelho fonador, a língua, linguagem, na planície do Serengueti, na Tanzânia, África, dos balbuciantes Australopithecus anamensis, dos Australopithecus afarensis, dos Australopithecus africanus aos Homo habilis, hábil, dos Homo ergaster ao Homo erectus, de pé em pé, passo a passo, ao Homo heidelbergensis, do Homo neanderthalensis ao Homo sapiens, o sábio, o falante, o que sabe fazer fogueira, o que sabe apagar a fogueira, o que sabe do cobre, sabe do ouro, sabe do bronze, sabe do ferro. Um sabido enfim. De gruta em gruta, do Estale, nas Bouches-du-Rhône, em Vértesszöllös, no Transdanúbio, Hungria, em Torralba e Ambrona, Espanha, em Zhoukoudian, China, na Mesoamérica daqui à Mesopotâmia de lá, em Gizé, em Abidos e em Deir el-Bahari, no Egito, nas planícies da Eurásia, da Alemanha à Sibéria, da Sibéria ao Alasca, pela ponte Beríngia ou Ponte Terrestre de Bering, do Indo ao não mais indo, permanecendo, se estabelecendo, eis que um dia de verão, quente, cálido, tépido, um ferreiro andante, procurador, à procura do objeto perdido, o metal, talvez preto, talvez pálido, nômade sim, vindo não se sabe donde, falando uma língua estranha, com mulher e filhos já, chegou ao que muito mais tarde saberia ser uma península. Itália.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A PSICANÁLISE DO FOGO


Uma das mais belas páginas da psicanálise foi escrita pelo filósofo e poeta francês Gaston Bachelard. É seu belíssimo livro chamado “A Psicanálise do Fogo”, leitura fundamental, cartilha de alfabetização elementar, magnífica, de chorar de tão linda. Um pequeno trecho deste poema maior, poema divisor de águas, poema bálsamo, poema transmissor de vida, de cuidado, poema de amor:

   “O amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objetiva do fogo. Prometeu é antes um amante vigoroso do que um filósofo inteligente, e a vingança dos deuses é uma vingança de ciúme.
    Tão logo formulada essa observação psicanalítica, uma quantidade de lendas e costumes se explicam facilmente, expressões curiosas, misturadas inconscientemente às explicações racionalizadas, se esclarecem sob uma nova luz. Assim Max Muller, que trouxe aos estudos das origens humanas uma intuição psicológica tão penetrante, amparada em conhecimentos linguísticos profundos, aproxima-se muito da intuição psicanalítica, sem todavia discerni-la. “Haveria tanta coisa a contar sobre o fogo!” E aqui está justamente a primeira: “Ele era filho de dois pedaços de madeira”. Por que filho? Quem é seduzido por essa visão genética? O homem primitivo ou Max Muller? De que lado essa imagem é mais clara? É clara objetivamente ou subjetivamente? Onde está a experiência que a esclarece? Será a experiência objetiva da fricção de dois pedaços de madeira ou a experiência íntima de uma fricção mais suave, mais acariciante, que inflama um corpo amado? Basta colocar tais questões para desvendar o foco da convicção que acredita que o fogo é filho da madeira.
    Devemos nos surpreender de que este fogo impuro, fruto de um amor solitário, já esteja marcado, nem bem nascido, pelo complexo de Édipo? A expressão de Max Muller é reveladora a esse respeito: a segunda coisa que haveria a contar sobre esse fogo primitivo é “de que maneira, tão logo nascido, devorava seu pai e sua mãe, isto é, as duas peças de madeira das quais havia brotado”. Jamais o complexo de Édipo foi melhor e mais completamente designado: se não consegues acender o fogo, o fracasso causticante irá roer teu coração, o fogo permanecerá em ti. Se produzes o fogo, a própria esfinge te consumirá. O amor não é senão um fogo a transmitir. O fogo não é senão um amor a surpreender.
    Como Max Muller não podia naturalmente beneficiar-se dos esclarecimentos proporcionados pela revolução psicológica da era freudiana, certas inconsequências são visíveis até em sua tese linguística. Ele escreve, por exemplo: “E quando (o homem primitivo) pensava o fogo e o nomeava, o que devia acontecer? Não podia nomeá-lo, senão conforme o que o fogo fazia: consumir e iluminar”. Deveríamos, pois, esperar, seguindo a explicação objetiva de Max Muller, que sejam os atributos visuais que venham designar um fenômeno concebido como primitivamente visível, sempre visto antes de ser tocado. Mas não: segundo as palavras de Max Muller, “eram sobretudo os movimentos rápidos do fogo que impressionavam o homem”. Assim é que ele foi chamado “o vivo, o ág-il, Ag-nis, ig-nis”. Essa designação por um fenômeno adjunto, objetivamente indireto, sem constância, não pode deixar de afigurar-se bastante artificial. Ao contrário, a explicação psicanalítica retifica tudo. Sim, o fogo é o Ag-nis, o Ág-il, mas o que é primitivamente ágil é a causa humana e não o fenômeno produzido, é a mão que enfia o pau na ranhura, imitando carícias mais íntimas. Antes de ser filho da madeira, o fogo é filho do homem.”

Fonte, rio Amazonas, oceano Atlântico: Gaston Bachelard no maravilhoso “A Psicanálise do Fogo”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 37-39.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

WAKE

“Wake” [acordar, despertar] de Richard Serra no parque Olympic Sculpture Park em Seattle, Washington. Fotografia de Matt Niebuhr, em 2010.

“Alguém obteve antes
de mim o bronze, o ferro, a prata, o ouro,
preciosidades úteis aos humanos,
que até então no solo se escondiam?”
Prometeu Prisioneiro de Ésquilo, versos 500-503 in Três Tragédias Gregas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.157. Tradução de Trajano Vieira.

Prometeu é aquele que obteve antes, é aquele que extraiu antes, é o parteiro primeiro, um obstetra, foi lá abrir o fechado, o chão da estrela, um lavrador que a fez desabrochar, feito rosa, se revelar, para dela se fecundar, com o bronze, com o ferro, com a prata, com o ouro que há, não visível, veios incógnitos, ígnea matéria, úmida condição. Prometeu é aquele que do feito foi feito, considerável, admirável, amado Prometeu. Se lascou, se lanhou, se sujou, se desonrou, se machucou, se ferrou. Promessa cumprida.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

PROMETEU

Um iate na 66a. regata de Sydney a Hobart, na Austrália, defronte a uma tempestade. Fotografia de Carlo Borlenghi in The Guardian, 28 de dezembro de 2010.

Que Ésquilo se pronuncie agora. Antes de Prometeu, o que havia? Havia o nada viam, havia o nada escutavam, havia os embaralhados, havia o desconhecimento, havia o fundo da caverna, não havia a superfície, não havia verão, não havia pensamento, só ação, não havia arreios, não havia selas, não havia cálculo, não havia a combinação das letras, não havia animais domados, não havia os navios de asas de linho. Prometeu ladrão do fogo? Prometeu passador da chama da vida, vida linda, vida sem mais o opressor medo da morte, vida ainda que de lá para cá, oscilante vida capengante, vida sob o sol, vida humana vida. Tu podes para sempre o condenar por ter sido um ladrão insolente, um ladrão desafiante, um ladrão reles, um ladrão de Deus. Tu podes. Eu não posso. 
 
“(...) Se olhavam algo, eles nada viam, 

não escutavam nada do que ouviam.
Ao longo de sua vida, embaralhavam
tudo ao acaso, símiles oníricos.
Desconheciam casas de tijolos
sob o sol e o trabalho na madeira.
Como formigas ágeis, sob a terra,
ocupavam o fundo das cavernas.
Nenhum sinal do inverno, da estação
das flores ou das frutas do verão.
Agiam sem pensar até eu mostrar-lhes
o difícil subir, descer, dos astros.
Inventei o prodígio das ciências –
o cálculo – e a combinação das letras,
memória, artífice de tudo, Musa.
Aos arreios e selas atrelei
os animais domados, substituindo
os homens na jornada. Conduzi
cavalos sob o carro. Aceitam rédeas,
ornamento onde impera o luxo extremo.
A alguém mais eles devem naves de asas
de linho, que vacilam pelo oceano?
Se fui autor de engenhos desse gênero
para os mortais, careço de ciência
que traga uma saída ao mal presente.”

 
Prometeu Prisioneiro de Ésquilo, versos 447-471 in Três Tragédias Gregas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 156. Tradução de Trajano Vieira.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

FOGO

“Vauxhall 2003” de Roger Hiorns. Instalação de aço e fogo no museu Tate Britain, Londres, 2003. Fotografia Tate Photography, David Lambert/Rod Tidman. Cortesia da galeria Corvi-Mora, Londres.

“Céu” e “fogo”, diz a palavra “ferro” na língua suméria. Da bola de fogo, o meteorito, que cai do céu, ao fogo no cadinho que irá produzir a separação do ferro, o resto de ferro no meio do caminho, o ferreiro será também um mestre do fogo, será aquele que sabe fazer o fogo. Uma vez feito, um ferreiro terá que fazer de conta que o controla. Há que cultivá-lo, cuidar de cada labareda com carinho, fazê-la crescer sem ser por ela envolvido em demasia – mas atenção: haverá queimaduras, haverá dor para quem mexe com o fogo. Não se é ferreiro sem a marca do fogo inscrita na pele, um sinal distintivo, um calor pelas entranhas afora, queimação estrangeira e íntima, incessante e inclemente, o fogo dominado agora dominador – ele se instala, ele habita o nome do ferreiro. Mestre desamestrado.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

METAL-ESTRELA

Detalhe de uma inscrição feita em uma placa de pedra suméria, aproximadamente do 26º  século antes de Cristo. O texto é uma lista de presentes da cidade de Adab para o Alto Sacerdote, na ocasião de sua eleição para o templo. Fonte: Schøyen Collection MS 3029 in Wikipedia.

Na primeira língua escrita conhecida, de uma das civilizações mais antigas do mundo, a Suméria, na parte sul da Mesopotâmia, a evidência epifânica, magnífica, belíssima: AN.BAR.

“A palavra suméria AN.BAR, o vocábulo mais antigo conhecido para designar ao ferro, está constituída pelos signos pictográficos “céu” e “fogo”. Geralmente se traduz por “metal celeste” ou “metal-estrela”. Campbell Thompson a traduz por “relâmpago celeste” (do meteorito).”

Fonte: Mircea Eliade in Ferreiros e Alquimistas.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

RESTO

Um cadinho do início da Idade Média, encontrado na rua Jewry Street em Winchester, ao sul da Inglaterra, capital do condado de Hampshire. Fonte: wessexarchaeology.

Após o uso do ferro meteórico, proveniente dos meteoritos, se descobriu o ferro de jazida. “Alguns arqueólogos acham que esse tipo de ferro foi descoberto quando da redução de minérios de cobre nos quais ele estava presente: como o ponto de fusão do ferro é superior ao do cobre, ele teria deixado um resíduo no fundo do crisol, que os metalurgistas em seguida teriam podido trabalhar em casa” (Michel Rival in As Grandes Invenções da Humanidade v. 1, editora Larousse, 2009, p.79).

 
Só podemos imaginar esta cena linda. Lá está um cobreiro que ainda não sabia que seria ferreiro, lá está em frente ao crisol, ao cadinho, pingando de suor, diante do fogo, animando o fogo, dando-lhe vida, a sua, em busca do cobre. Ele só entende de cobre, só quer saber de cobre, o cobre é sua meta, o cobre é seu ganha-pão, e aí esse encontro inesperado, esse encontro que mudaria sua vida para sempre, o encontro com o resto, o encontro com o resíduo, o encontro com o desconhecido. O que fazer do resto? Muitos cobreiros jogaram esse resto fora, muitos cobreiros se livraram rapidamente dessa impureza, dessa esquisitice, dessa diferença entre o buscado e o encontrado. Mas o futuro ferreiro teve medo, teve inquietação, teve curiosidade. Ele já trazia em si a pele queimada, ele já havia há muito contrariado o mandamento paterno de não mexer com o fogo para não se queimar. Ele, queimado, ele, curtido, ele deixou esfriar este resto, ele pegou este resto, ele bateu com o martelo neste resto, ele aqueceu-o de novo, ele foi respingado por esse resto, ele desaqueceu-o, ele fez desse resto insígnia – mesmo sem saber como nomeá-lo, mesmo sem saber o que fazer disso. Resto enigma.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

FERRO SIDÉREO

Xilogravura de Albrecht Dürer sobre a queda do meteorito na cidade de Ensisheim, na região administrativa da Alsácia, no departamento do Alto Reno, França, em 16 de novembro de 1492.
 
Penso na primeira vez.
Ali está, no chão, caído, esborrachado, sem mais aquele brilho da cauda, despedaçado,
o que um dia foi unido, o que um dia foi meteorito.

 
Viajante sideral, emigrante do espaço,
ei-lo agora aos pedaços, rochas espalhadas,
restos de ferro à luz do dia, mina invertida.

 
O primeiro mineiro não teve que escavar. Ele topou com o rastro no céu, com o resto no chão, rocha fumegante, rocha fértil, rocha prenhe, rocha dura. Pedra no meio do caminho.

 
Este homem siderado, atingido por este astro, gamado no que ali não via, considerou então a pergunta decisiva: então o céu é de pedra? Ele pode cair, ele pode desabar?

 
Penso nos astecas e seu desencontro com aquele europeu assassino, Cortês nada cortês, que lhes perguntou de onde vinham suas facas. Eles apontaram o céu.

 
Siderúrgicos, siderais.
Do ferro das estrelas, o ofício de fabricar,
de transformar, de reunir o partido,
levantar o caído, dar-lhe forma, rosto e movimento. 

 
Fazê-lo de novo voar. Ferro sidéreo, estrela ascendente.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

VESTÍGIOS

“L’atelier du forgeron derrière la Douane”, o ateliê do ferreiro atrás da aduana em Saint John, New Brunswick, Canadá, sem identificação da família, do fotógrafo nem a data, possivelmente entre 1880 e 1890. Fonte: Wikipedia.
 
Quem foi o primeiro ferreiro? Não se sabe. Porém, há pistas preciosas.

 
“O emprego do ferro é extremamente raro antes do II milênio. Atualmente se conhecem somente 14 vestígios de objetos de ferro que remontam a um período anterior ao IV milênio. Provêm de apenas quatro sítios: Samarra, no Iraque, de onde foi extraído o mais antigo objeto conhecido, datado de cerca de 5000 a.C.; Tepe Sialk, no Irã; El Gerzeh e Armant no Egito. Com exceção do objeto de Samarra, cujo ferro é produto de uma redução, o que é considerado uma anomalia pelos arqueólogos, os demais objetos são de ferro meteórico. O III milênio não é muito mais rico em vestígios: alguns objetos de ferro em Uruk, em Tell Asmar, em Ur e em Chagar Bazar, no Iraque; em Alaça Höyük e em Tróia, na Turquia; na pirâmide de Quéops, em Gizé; em Abidos e em Deir el-Bahari, no Egito” (fonte: Michel Rival in As Grandes Invenções da Humanidade, v. 1, editora Larousse, São Paulo, 2009, p. 70).

 
Essa raridade fez do ferro um metal precioso, associado a outros materiais raros na época, como o ouro, a ágata ou a cornalina, para fabricar jóias ou objetos cerimoniais. Segundo Rival, “a crer num texto acadiano do século XIX a.C., o ferro custaria então oito vezes mais caro que o ouro. Homero faz eco a essa raridade do ferro na idade do bronze numa passagem da Ilíada em que um bloco de ferro é oferecido como troféu ao vencedor de uma prova de atletismo” (p. 70).

 
A referência a Homero encontra-se no penúltimo canto da Ilíada, o XXIII, onde Aquiles e os guerreiros gregos fazem honras ao funeral de Pátroclo. Uma dessas homenagens são os jogos. Dos diversos prêmios ofertados por Aquiles (versos 260 em diante), a bela escrava, caldeiras, cavalos, bois, lá está um bloco de ferro luzente (ou “ferro sidéreo-cinza”, na maravilhosa tradução de Haroldo de Campos). No verso 826, Aquiles apresenta este “globo grosseiro de ferro” e em seguida (versos 831 em diante), ele diz: “Que se apresentem, agora, os que a prova tentar desejarem. Para cinco anos terá provisão suficiente de ferro quem conquistar esse globo; e se longe seus campos ficarem, nunca há de ferro faltar-lhe, sem ver-se obrigado a incumbência dar a um dos homens, colono ou pastor, à cidade ir comprá-lo” (fonte: Ilíada de Homero, na tradução de Carlos Alberto Nunes para a editora Ediouro, Rio de Janeiro, 2001, p. 521. A tradução de Haroldo de Campos está na edição da editora Arx, São Paulo, 2002, p. 403).

 
Bem antes disso, no início da Ilíada, canto IV, lá está a aparição magnífica do ferreiro em meio aos guerreiros, um guerreiro muito especial, um guerreiro raro. Trata-se do diálogo de dois irmãos, Menelau, ferido, e o rei Agamémnone. Diz Menelau:

 
“Ânimo, irmão! Não consternes, sem causa, os guerreiros Aquivos. 
A seta, agora, não deu em lugar perigoso, porque antes
foi pela malha detida, a couraça de aspecto brilhante
e o cinturão, que o bronzista forjou com bastante perícia”
Fonte: tradução de Carlos Alberto Nunes, p. 123.

 
O bronzista forjou. Homero poderia ter parado nesta frase que já seria uma obra-prima. “O bronzista forjou”. Sensacional! Aquiles tem nome, Menelau tem nome, Agamémnone tem nome. O bronzista não tem nome. Ora, o que seria do guerreiro grego de nome sem este bronzista forjador sem nome? Nada seria. Fazedor de couraças, tecedor de malhas, urdidor de cinturões. O ferreiro forjou. O Ferrari. Nasceria aí um novo nome.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

AFIA A DOR

“Amolador” da série “Ambulantes” de Marc Ferrez (ferreiro), no Rio de Janeiro em 1895.

Das dores, destinos. O que fazer com a dor? Ele afia, a desafia, a desfia devagarinho com sua roda do esmerilho. Com o pé, ele faz girar a roda, ele põe a dor na roda – há dor nesta roda, basta lê-la de trás prá frente. Ele, meu irmão, pega a dor com carinho, afina-a, desbasta-a, torna-a mais aguda, mais cortante, para lembrar que vida sem dor não é vida. A vida e a dor andam juntas. Se tirar uma, a outra desanda, a outra emperra, a outra fica cega. Há dor nesse ferreiro, um ambulante sem nome, minha família, um ferreiro assim. Ferrari.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

CHEIRO

Carolina Herrera por Arthur Elgort em 17 de junho de 2010 in El País, 27 de junho de 2010.

Ela não nasceu ferreira. Ela nasceu Maria Carolina Josefina Pacanins y Niño, em Caracas, Venezuela. Foi só no seu 2º casamento que ela encontrou o ferreiro de sua vida: Reinaldo Herrera Guevara, Marquês de Torre Casa. Aí tiveram uma filha, Carolina. Aos 41 anos, criou sua empresa de moda, que no ano seguinte se mudaria para Nova Iorque.  Sobre seu perfume “212”, em homenagem ao código telefônico de Nova Iorque, ela diz: “baseado no jasmim e no nardo, que era o que eu sentia no ar em meu quarto de dormir quando criança, em Caracas” (fonte: entrevista de Carolina Herrera a Vicente Verdú in El País, 27 de junho de 2010). Na fragrância de um perfume, o que restou daquilo que se perdeu. Herrera, ferreira, Ferrari. Prima.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

RIQUEZA

A prima Maria Kuznetsova canta a ária “Sì, mi chiamano Mimì” da ópera La Bohème de Puccini, gravada por Pathé em 1917.

Na festa de 15 anos da tia Branca, meu pai conheceu minha mãe. Ela, uma Schwertner, filha de uma Schmitz. Ora, Schmitz em alemão significa ferreiro.
Foi Belkiss quem me deu de presente a incrível descoberta da tradução do nome Ferrari para outras línguas. Nos países de língua inglesa, é o sobrenome Smith o equivalente a Ferrari. Daí o fato de Adam Smith, autor de “A Riqueza das Nações”, ser da família. Na Itália, os Fabbri, Fabbro, Fabris e Ferraros também são Ferrari. Na França, Lefebvre, Lefèvre, Lefeuvre, Lefébure, Favre, Faber, Faure, Favret, Favrette e Dufaure. Na Espanha, Herrera, Herrero, Ferrero. Na Catalunha, Ferrer, Ferré, Farré, Fabre, Fabra. Em português, Ferreiro, Ferreira. Na Rússia, Kovalëv e Kuznetsov. Kuznetsov? A extraordinária diva russa de ópera, Maria Kuznetsova, minha prima! Chorei de alegria aqui! Na Polônia, Kowal e Kowalski. Na Ucrânia, Kovalenko, Kovalchuk, Koval. Na Irlanda, MacGouran. Na Arábia, Hadda. Na Grécia, Siderás (Σιδεράς), Sidéris (Σιδέρης) - bem pertinho de desidero, desejo.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

COXO

O Templo de Hefesto em Atenas. Fotografia de Michael Creasy em 2011.
 
Os gregos tiveram a rara felicidade de inventar os deuses da falta, os deuses das versões. São deuses que não estão onde deveriam estar, não fazem o que deveriam fazer, deuses imprevisíveis, deuses estranhos, deuses perigosos, deuses incertos, ora descritos de um jeito, cinco minutos depois de outro. Hefesto, por exemplo, o deus grego do fogo e dos ofícios, o deus ferreiro. A confusão se inicia já em seu nascimento. De quem Hefesto é filho? Para alguns, de Zeus e Hera, para outros, como Hesíodo, somente de Hera. Ela o teria gerado sem união amorosa, por cólera e desafio ao seu esposo, pois Zeus havia acabado de gerar Atena de sua própria cabeça. E nasceu como? Para Robert Graves, nasceu fraquinho, de tal maneira que sua mãe, desgostosa, atirou-o do alto do Olimpo. Já para Homero, Hefesto nasceu coxo, nasceu disforme, e por causa disso, Hera, envergonhada, jogou-o fora. Se fosse um mortal, teria morrido. Mas a mitologia grega tira de um lado, dá de outro. Ao despencar no mar, Hefesto cai nos braços de Tétis e Eurínome, duas amáveis deusas que passeavam por ali naquela hora, naquele instante. Porém, a queda tem um preço. Hefesto se machuca, fica coxo – é outra versão do mito que não acredita ter ele nascido assim. Porém, em outra versão, revista e atualizada, teria ele ficado coxo por haver sido demais filhinho da mamãe, ter tomado partido de sua mãe contra seu pai em uma briga do casal, e assim Zeus, louco de cólera, de castigo o lançou ao mar. De qualquer modo, as versões parecem concordar que essas deusas passeantes, Tétis e Eurínome, recolheram-no, acolheram-no, acalentaram-no em um gruta profunda no meio do oceano, e lhe ensinaram algo muito precioso durante nove anos: o ofício de ferreiro e de artesão. Maneira elegante da mitologia grega indicar que tudo se aprende do outro. Não existem ferreiros que se fazem por si mesmos. E aqui nesta história, ele vai aprender com outras, com duas mulheres, o que não deixa de ser imensamente interessante. Ora, em outra versão dos pés coxos de Hefesto, pés cambaios, pés rengos, a historiadora belga Marie Delcourt acredita ter sido este o preço do aprendizado, o preço da prova iniciatória desta arte de manipular o ferro. Seja o que for, Hefesto se tornou ferreiro, se tornou joalheiro, se tornou armeiro – fez colares, fivelas, brincos, o escudo de Aquiles na Ilíada, fez armadilhas. A mais célebre delas, fez uma rede invisível para prender sua esposa, Afrodite, no momento da traição com Ares – e chamou todo mundo para ver a prova do crime. Os deuses riram – numa versão, riram da cornice de Hefesto, o traído, o passado para trás – em outra versão, riram dos traidores presos na rede e, em versão mais moderna, riram para não chorar, pois perceberam o enorme poder de Hefesto. Sobre esse poder, em uma outra versão, Mircea Eliade diz que Hefesto criou Pandora a pedido de Zeus, bem como ajudou-o no nascimento de Atena, o que faria de Hefesto o primeiro obstetra da história – mas como, perguntarão alguns, se ele recém havia nascido e ainda não tinha aprendido o ofício de ferreiro-parteiro? Esta é outra invenção brilhante dos gregos: o paradoxo, a confusão, Dionísio onde querem apenas Apolo.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

FERREIROS DE CANÇÕES

Com o martelo e a bigorna nas mãos, o Ferrari Chico Buarque de Holanda em Porto Alegre, 30 de março de 2007, por Fernanda Steffen in Wikipedia.

Na mais bela página de seu magnífico “Ferreiros e Alquimistas”, o grande historiador Mircea Eliade, um ferreiro de mão cheia, nos dá de presente esta pesquisa iluminada, esta pesquisa maravilhosa, esta pesquisa inusitada, surpreendente, de uma perspicácia fora do comum, de um encanto formidável. Que o leitor recorte isso e coloque na cabeceira da cama, na porta da geladeira, em um canto da TV, na metade da tela do computador, que pregue isso nos postes do centro da cidade, e, se tiver filhos pequenos ou for professor de jardim de infância, não se acanhe, não se vexe de ler isso em voz alta, de declamar essas letras com generosidade. Eu sei que nesta hora lágrimas saltarão dos olhos, as lágrimas-marcas, as lágrimas-aquelas, as lágrimas de uma rara felicidade. Devagar agora:

 
“A solidariedade entre o ofício de ferreiro e o canto fica claramente manifestada no vocabulário semítico: o árabe q-e-n, “forriar, ser ferreiro”, está aparentado com os termos hebreu, sírio e etíope que designam a ação de “cantar, entoar uma lamentação fúnebre”. É inútil recordar a etiologia da palavra poeta, do grego potetes, “fabricante”, “fazedor”, e a vizinhança semântica de “artesão” e “artista”. O sânscrito taksh, “fabricar”, utiliza-se para expressar a composição dos cantos do Rig Veda. O antigo escandinavo lotha-smithr, “canção-ferreiro”, e o termo renano reimschmied, “poetastro”, sublinham ainda mais claramente os laços íntimos existentes entre a profissão de ferreiro e a arte do poeta ou do músico (Gaster, ibid). Segundo Snorri, Odhin e seus sacerdotes se chamavam “ferreiros de canções” (Ohlhaver, Die germanisch Schmied, p. 11). As mesmas relações se observavam entre os turcos-tártaros e os mongóis, entre os que o ferreiro se acha associado aos heróis, aos cantores e aos poetas. Deste modo teremos que recordar aos zíngaros, nômades ao mesmo tempo que ferreiros, caldeireiros, músicos, curandeiros e recitadores da sorte. O nome que os zíngaros dão a si mesmos é na Europa Rom; em Armênia, Lon; na Pérsia, Dom, e em Síria, Dom ou Dum. “Agora bem escreve Julio Bloch, dom é na Índia o nome de uma tribo, ou melhor de um conglomerado de tribos muito estendidas e conhecidas antigamente”. Nos textos sânscritos vão associados aos músicos, aos intocáveis, mas são conhecidos sobretudo como ferreiros e músicos.” 

 
Fonte, oceano, catarata do Iguaçu: Mircea Eliade in Ferreiros e Alquimistas, ed. Jorge Zahar, esgotado, mas, felizmente, à disposição por aí na internet. A citação está no capítulo 10, “Ferreiros, guerreiros, mestres de iniciação”.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

NÓS NEGROS

Cabeça de bronze de um oba de Ifé, c. 1200. Fotografia de Andrea Jemolo no Museu de Antiguidades de Ifé, Nigéria. Com a palavra, Julian Bell: “O oba era um sacerdote-rei na cidade sagrada de Ife, no que é hoje a Iorubalândia. Ele descendia da divindade criadora Oduduwa e teria passado seu reinado no mais recôndito santuário do palácio, longe dos olhos dos mortais comuns. Ife foi o grande centro da metalurgia nigeriana entre os séculos XI e XIV; pouco antes disso, no sudeste, Igbo-Ukwu produzira obras de uma sofisticação técnica sem paralelo na época, em qualquer parte do mundo (...) As culturas do oeste africano tendem a fazer suas imagens em pares. O par desta aqui, a representação externa do rei, não teria sido a da rainha (...), mas um cilindro diminuto e ereto, uma abstração dotada de olhos – a imagem do interior, do homem espiritual.” Fonte: Julian Bell in Uma Nova História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 132.

Na mitologia africana, um ferreiro divino é aquele que prepara o universo para a humanidade, é aquele que desce do céu.

“Segundo o povo fon de Benin, na África Ocidental, o filho mais velho de Mawu-Lisa, as deidades criadoras gêmeas, era Gu, o ferreiro celeste. Ele foi trazido à terra por Lisa, o gêmeo masculino, na forma de uma espada de ferro cerimonial que ele segurava. Diz-se que Gu foi então encarregado de tornar a terra habitável para os seres humanos, tarefa que ele nunca abandonou. Gu ensinou a trabalhar o ferro e mostrou às pessoas como produzir ferramentas para que pudessem obter alimento, cobrir seus corpos e construir abrigos. Amma, o deus criador dos dogons, fez o primeiro ferreiro espiritual da placenta de um Nommo. Mas esse espírito não tinha fogo, então ele roubou um pedaço do sol dos gêmeos celestiais Nommo e desceu à terra em um arco celeste. Outros mitos da região do Saara contam como o primeiro ferreiro fez um arado do crânio de um antílope celestial chamado Bintu, depois desceu à terra com ele para ensinar a recém-criada raça humana a cultivar” (Roy Willis in Mitologias. Editora Publifolha, 2007, p. 267).

Ora, como falar de África, de Ifé, sem falar de Ogum? Acredita-se, no candomblé, que todos somos filhos de orixás. Ogum é o orixá da guerra e do fogo.  

Conhecido também como ferreiro, é uma espécie de herói civilizador africano à medida que conhece os segredos da forja necessários para a fabricação de instrumentos agrícolas e de guerra. Por isso, seus símbolos são a espada e ferramentas como enxada e a pá. No mito, Ogum teria sido o filho do rei Odudua, fundador da cidade de Ifé (o principal centro divulgador da cultura iorubana da África) e conquistador de vários reinos” (Vagner Gonçalves da Silva em “Redução de Divindades” in Grandes Religiões 6 – Cultos Afros, ed. Duetto, 2010, pp. 20-21).

Ferreiros africanos, Ferraris africanos. Nós, europeus, nós brasileiros, nós mediterrâneos, nós amazônicos, nós do rio Panaro, nós do Rio Grande do Sul, nós africanos, nós negros. Ferraris, ferreiros.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A LESTE DO ÉDEN

“Invention de la pensée et de l’art de forger, Giohargius et Tubal-Caim” [A invenção do pensamento e da arte de forjar], tapeçaria de lã no Musée de Cluny-Musée du Moyen Age [Museu da Idade Média] em Paris. Origem: Países Baixos do Sul, início do século XVI. Fotografia de straighfromthecask em 14 de maio de 2011.

Tubal-Caim é citado uma única vez na Bíblia. No livro de Gênesis, capítulo 4, versículo 22, ele é apresentado como filho de Lamec e Zila, irmão de Naamah, descendente de Caim. Um malleator na tradução de São Jerônimo para o latim, um amestrador, aquele que sabe malhar o cobre e o ferro, sabe transformá-lo, dar-lhe uma forma outra daquela da natureza, um faber, inventor, um mestre de armas. Para alguns, o primeiro químico, um cientista,  para outros o primeiro fabricante de armas de guerra. Para todos, um ferreiro.

O historiador Mircea Eliade, assim fala sobre ele e sobre Caim: 

“Eva deu à luz Caim, “que cultivava o solo”, e Abel, “pastor de ovelhas”. Quando os irmãos ofereceram sacrifícios de gratidão – Caim, produtos do solo, e Abel as primícias do seu rebanho - , Javé acolheu a oferenda de Abel, mas não a de Caim. Irado, ele “se lançou sobre seu irmão e o matou” (Gênesis, 4:8). Agora, sentenciou Javé, “és maldito e expulso do solo fértil. Ainda que cultives o solo, ele não te dará mais seu produto: serás um fugitivo errante sobre a Terra” (4:11-16).  Pode-se ver nesse episódio a oposição entre lavradores e pastores, e, implicitamente, a apologia destes últimos. Entretanto, se o nome de Abel quer dizer “pastor”, Caim significa “ferreiro”. O seu conflito reflete a situação ambivalente do ferreiro em certas sociedades pastoris, onde ele é ora desprezado, ora respeitado, mas sempre temido. Como vimos, o ferreiro é considerado o “senhor do fogo” e dispõe de poderes mágicos temíveis. Em todo caso, a tradição conservada no relato bíblico reflete a idealização da existência “simples e pura” dos pastores-nômades, e a resistência contra a vida sedentária dos agricultores e dos habitantes das cidades. Caim “tornou-se um construtor de cidade”(4:17), e um dos seus descendentes é Tubalcaim, “o pai de todos os laminadores em cobre e ferro” (4:22). O primeiro assassinato é portanto cometido por aquele que, de alguma forma, encarna o símbolo da tecnologia e da civilização urbana. Implicitamente, todas as técnicas são suspeitas de “magia” “ (Mircea Eliade in História das Crenças e das Ideias Religiosas, v. I, Jorge Zahar editora, 2010, pp. 166-167).
 
Seríamos, os Ferrari, descendentes de Caim? Sobre essa questão, o maravilhoso escritor norte-americano John Steinbeck, em seu magnífico East of Eden [A Leste do Éden, editora Record, 2005], assim responde: “Mas Caim viveu e teve filhos e Abel vive somente na história. Somos os filhos de Caim” (p. 291).