Uma das mais belas páginas da psicanálise foi escrita pelo filósofo e poeta francês Gaston Bachelard. É seu belíssimo livro chamado “A Psicanálise do Fogo”, leitura fundamental, cartilha de alfabetização elementar, magnífica, de chorar de tão linda. Um pequeno trecho deste poema maior, poema divisor de águas, poema bálsamo, poema transmissor de vida, de cuidado, poema de amor:
“O amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objetiva do fogo. Prometeu é antes um amante vigoroso do que um filósofo inteligente, e a vingança dos deuses é uma vingança de ciúme.
Tão logo formulada essa observação psicanalítica, uma quantidade de lendas e costumes se explicam facilmente, expressões curiosas, misturadas inconscientemente às explicações racionalizadas, se esclarecem sob uma nova luz. Assim Max Muller, que trouxe aos estudos das origens humanas uma intuição psicológica tão penetrante, amparada em conhecimentos linguísticos profundos, aproxima-se muito da intuição psicanalítica, sem todavia discerni-la. “Haveria tanta coisa a contar sobre o fogo!” E aqui está justamente a primeira: “Ele era filho de dois pedaços de madeira”. Por que filho? Quem é seduzido por essa visão genética? O homem primitivo ou Max Muller? De que lado essa imagem é mais clara? É clara objetivamente ou subjetivamente? Onde está a experiência que a esclarece? Será a experiência objetiva da fricção de dois pedaços de madeira ou a experiência íntima de uma fricção mais suave, mais acariciante, que inflama um corpo amado? Basta colocar tais questões para desvendar o foco da convicção que acredita que o fogo é filho da madeira.
Devemos nos surpreender de que este fogo impuro, fruto de um amor solitário, já esteja marcado, nem bem nascido, pelo complexo de Édipo? A expressão de Max Muller é reveladora a esse respeito: a segunda coisa que haveria a contar sobre esse fogo primitivo é “de que maneira, tão logo nascido, devorava seu pai e sua mãe, isto é, as duas peças de madeira das quais havia brotado”. Jamais o complexo de Édipo foi melhor e mais completamente designado: se não consegues acender o fogo, o fracasso causticante irá roer teu coração, o fogo permanecerá em ti. Se produzes o fogo, a própria esfinge te consumirá. O amor não é senão um fogo a transmitir. O fogo não é senão um amor a surpreender.
Como Max Muller não podia naturalmente beneficiar-se dos esclarecimentos proporcionados pela revolução psicológica da era freudiana, certas inconsequências são visíveis até em sua tese linguística. Ele escreve, por exemplo: “E quando (o homem primitivo) pensava o fogo e o nomeava, o que devia acontecer? Não podia nomeá-lo, senão conforme o que o fogo fazia: consumir e iluminar”. Deveríamos, pois, esperar, seguindo a explicação objetiva de Max Muller, que sejam os atributos visuais que venham designar um fenômeno concebido como primitivamente visível, sempre visto antes de ser tocado. Mas não: segundo as palavras de Max Muller, “eram sobretudo os movimentos rápidos do fogo que impressionavam o homem”. Assim é que ele foi chamado “o vivo, o ág-il, Ag-nis, ig-nis”. Essa designação por um fenômeno adjunto, objetivamente indireto, sem constância, não pode deixar de afigurar-se bastante artificial. Ao contrário, a explicação psicanalítica retifica tudo. Sim, o fogo é o Ag-nis, o Ág-il, mas o que é primitivamente ágil é a causa humana e não o fenômeno produzido, é a mão que enfia o pau na ranhura, imitando carícias mais íntimas. Antes de ser filho da madeira, o fogo é filho do homem.”
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