terça-feira, 31 de janeiro de 2012

TUBAL-CAIM

 A Catedral de Santa Maria del Fiore, em Florença.


Tubal-Caim, o inventor da metalurgia por Andrea Pisano, c. 1334-1336, no Campanário de Giotto in Santa Maria del Fiore, Florença.

No coração da cidade de Florença está Santa Maria del Fiore [Santa Maria da Flor], também conhecida como Duomo, uma palavra na Itália para designar Catedral, originada do latim Domus, casa, a casa de Deus. Nela se encontram reunidas duas obras arquitetônicas magníficas, a cúpula, realizada por Fillipo Brunelleschi e a torre dos sinos, o campanário feito por Giotto di Bondone. Na base deste campanário ou aos pés deste torre, encontra-se um trabalho do artista Andrea Pisano em que ele homenageia Tubal-Caim, o inventor da metalurgia. Lá está ele sentado, ao lado de suas ferramentas, diante da forja e da bigorna e situado ao lado da série dos trabalhos de Pisano que homenageia Adão, Eva, a música, o pastoreio, o vinho, todos ao oeste do Campanário. Ao sul estão a astronomia, a aquitetura, a medicina, a caça, a tecelagem, a legislatura e Dédalo. No lado leste, Pisano homenageia a navegação a remo, a justiça, o cultivo, o teatro, a geometria. Finalmente, ao norte, a escultura, a pintura, a gramática, a filosofia, a aritmética, a astronomia.

Ora, por que Pisano colocou Tubal-Caim perto de Adão e Eva? Quem foi Tubal-Caim?

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

FABER FERRARIUS


Fonte: Bible Study Tools, consultado em 2 de novembro de 2010.
 
De onde vem o nome Ferrari? Uma tradução do hebraico para o latim feita no final do século IV e início do século V, por São Jerônimo, a pedido do Papa Dâmaso I, que resultou na Bíblia Vulgata, ou seja, traduzida para o povo, dá uma primeira pista para essa resposta. Na tradução para o latim, no livro de Isaías, capítulo 44 e versículo 12, assim aparece o nome Ferrari:

“faber ferrarius lima operatus est in prunis et in malleis formavit illud et operatus est in brachio fortitudinis suae esuriet et deficiet no bibet aquam et lassescet”

Em português, o faber ferrarius, ou seja, o artesão ferreiro, que lima operatus, do limão faz limonada, est in prunis et in malleis formavit, lindo isso, ele faz o machado e trabalha nas brasas, no calor, dá forma ao informe, afia e desafia, formavit illud et operatus, ilude a natureza a marteladas, opera, bate e rebate sobre a matéria, mas, ai, ai, ai, suae esuriet et deficiet, sua, faminto, cansa quando non bibet aquam et lassescet, quando não bebe daquela água, desfalece. Ferra-se.

Ora, analisando-se este faber ferrarius se descobre que existe aí dois elementos latinos diferentes, o vocábulo “ferrum”, ferro, e o sufixo “-arius”, formando “ferrarius”, indicativo da profissão de ferreiro. Daí o fato do ferreiro ser um artesão, ele fabricar ferramentas, fazer machados, trabalhar nas brasas, no calor, e dar forma ao informe, o que caracteriza um artista. A profissão de ferreiro se difundiu por toda a Itália, por isso o nome de família Ferrari existir em todas as regiões da Itália.

Há muitos exemplos de ferreiros em nossa família, desde o sapateiro Valente, pai de Mario, passando pelo próprio Mario quando, por exemplo, dedicou parte de sua vida em dar forma ao informe, da farinha de trigo fazer macarrão, mas um dos exemplos mais interessantes veio do filho de Mario que recebeu o nome do pai: Mario Augusto, um dos irmãos de meu pai. Mario Augusto foi estudar Direito e se tornou juiz em Porto Alegre. Mas por que associá-lo ao faber ferrarius, ao ferreiro? Devido a um dos símbolos que representam a justiça, o martelo. Martelo? Faber ferrarius.

domingo, 29 de janeiro de 2012

FAMÍLIA

Desenho de Saul Steinberg.

O que é uma família? Na carta de Remo para Mario, essa palavra aparece três vezes. Na carta de Aquiles, lá está a família como centro. Nas cartas de Ariel, tanto em sua ida para a Itália – através da cidadania italiana recebida somente por ser membro de uma família também italiana – como na própria escolha da profissão, eis a família em destaque duas vezes. O que significa ser um Ferrari? O que significa pertencer à família Ferrari? Se os caminhos parecem ser tão diferentes, o caminho de Remo em Savignano sul Panaro, o caminho de Mario como imigrante em Santos, Sarandi, Passo Fundo, Palmeiras das Missões até chegar a Carazinho, o caminho de Aquiles até o Rio de Janeiro, pelo Rio de Janeiro, através do Rio de Janeiro – e depois, a volta ao mundo, o caminho de Ariel de Carazinho à Nápoles, de Nápoles a Cagliari, de Cagliari de volta a Carazinho, se as datas e as épocas não podem coincidir, 1945, 1968, 2007, se as cartas falam de coisas muito diferentes, a alegria da libertação numa, a dor da prisão na outra, a conquista de um campeonato, o que une essas histórias, o que reúne essas diferenças sem apagá-las?

sábado, 28 de janeiro de 2012

O QUE PASSA DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO

Ariel Ferrari aos 18 anos em Nápoles, na Itália, com o time de futebol de salão Napoli Barrese [Ariel esclarece: Napoli, por causa da cidade e Barrese por causa do bairro Barra, local de origem do time], na comemoração de campeão da Copa Itália – Profissionais, em fevereiro de 2007. Ariel é filho de Cesar Mario e de Solange Fátima, neto de Valentino e Noêmia, e bisneto de Mario e Angelina.

Em meados de 2006, em Carazinho, Ariel recebeu a proposta para ir jogar futebol de salão na Itália. Ele, que começou a jogar aos seis anos, em Carazinho, no Pinheiro Atlético Clube, que depois aos 17 foi jogar em Espumoso, no Guarany, eis que se viu diante de uma decisão. Fazer o caminho inverso de seu bisavô, Mario. Lá foi, com seus pés, escrever uma história, driblar os estorvos, passar, receber, fintar, marcar, cabecear, chutar, fazer gols, conduzir, dominar a bola. É dessa forma que ele escreve também cartas. Com os pés. Passe a passe. De Carazinho para Nápoles, de Nápoles para Cagliari, de Cagliari para Carazinho. Um Ferrari. Uma observação final: para um psicanalista, o mais lindo aqui é o fato do trineto de Valente Ferrari, pai de Mario e avô de Valentino, ter sido tocado, quatro gerações depois, pelo significante da profissão do trisavô, que foi sapateiro. Um homem voltado aos pés. Só que desta vez, como pivô, atacante, goleador de um time de futebol de salão. Que isso retorne, sem que Ariel se dê conta, quatro gerações depois, demonstra a força do inconsciente, o conceito fundamental inventado por Freud, ou seja, a força daquilo que passa pelas palavras ditas sem querer, faladas sem saber, mas que sempre chegam ao seu destino, como uma carta, com a diferença de que o emissário dela não sabe que é emissário, tampouco o destinatário sabe que a recebeu. No entanto, ela foi enviada e ela foi recebida. Carta de família.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

NORTE

Aquiles Ferrari na Associação Brasileira de Imprensa em 30 de junho de 2010. Fotografia de André Gomes de Melo.

O Brasil libertador de 1945 não foi o mesmo de 1964 e de 1968. Com 2 anos de idade em 64 e com 6 anos em 68, o que um menino poderia saber disso? Ele soube os sussurros numa casa que não sussurrava, ele viu rostos contraídos, rostos escondidos, rostos rotos, ele foi cercado por um silêncio severo, o guarda-chuva em dia de sol da bisavó alemã querida que parecia querer proteger-lhe até do sol, a tristeza de seu pai por nada saber sobre o paradeiro do irmão, vovó Angelina de um lado para outro do fogão aceso. E depois, muito depois, a risada sem saber por que depois da chegada de um cartão postal vindo de Roma. Ele ouviu pela primeira vez na vida a palavra tortura.

Em 30 de junho de 2010, durante o evento “Direitos Humanos no Rio de Janeiro: construir a memória para resguardar o futuro”, tio Aquiles, em nome de anistiados políticos e de diversas organizações de defesa dos direitos humanos, assim falou em um certo momento:

“Ao longo destes anos a rede de reparação ampliou sua agenda e a luta pela reparação integral; reparação no sentido amplo do termo, pela verdade, pela memória, pela justiça. Por uma reparação mais justa para os que viveram a barbárie da tortura e que tiveram seus companheiros desaparecidos e mortos. Lutamos para que a sociedade conheça o que aconteceu na época da ditadura e para que nunca mais se esqueça. Lutamos para que os responsáveis pelos atos de violência do Estado sejam identificados e julgados. Vivemos na carne a dolorosa experiência da tortura. Milhares foram presos, perseguidos; outros viveram no exílio, foram assassinados. Famílias e amigos ainda lutam para conseguir os restos mortais dos desaparecidos. Tivemos os nossos projetos de vida interrompidos. Não queremos que esta situação volte a se repetir” (fonte: Cláudia Souza na página da ABI na internet, em 30/6/2010. Agradeço a Belkiss por ter descoberto essa reportagem no ano passado).

Luta. A luta pela memória, a luta pela verdade, a luta pela justiça, a luta pela reparação. Tia Branca, que também viveu as agruras do exílio, escreveu ano passado seu belíssimo “Ao Norte do Horizonte” (ed. Biblos, São Paulo, 2011). Lá está a sua voz no personagem Guilhermo, quando diz:

“Cidadãos comuns perdem seus cargos, perdem direitos políticos, têm suas casas invadidas com violência, são levados para cárceres onde torturas medievais se transformam em prática corriqueira, muitos morrem” (p. 23).

Tio Aquiles não morreu. É dele esta carta que nos chega. Carta de família.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A CARTA



“Savignano Sul Panaro 27/4/1945
Caro zio,
Per grazia di voi Brasiliani ci siamo liberati dai tedeschi e fascisti; ora stiamo bene. È morto 5 anni fa vostro fratello Luigi.
La famiglia vive bene, vostra sorella vive ancora contutta la famiglia; abitiamo al Bivio di Savignano Sul Panaro.
Vostro fratello Armando vive ancora con tutta la famiglia solo che in un bombardamento ha rimesso la casa.
Di vostro fratello Pietro non si hanno notizie dalla morte della vostra mamma.
Vi saluto caramente da tutti.
Vostro nipote

Remo Venturelli.”
[Savignano Sul Panaro, 27/4/1945. Querido tio: graças a vocês, brasileiros, nós fomos libertados dos alemães e fascistas. Agora estamos bem. Morreu há 5 anos seu irmão Luigi. A família vive bem. Sua irmã vive agora com toda a família. Moramos na divisa de Savignano Sul Panaro [nota: com a cidade de Vignola]. Seu irmão Armando vive junto de toda a família, pois devido a um bombardeio, perdeu a casa. Não se tem notícia de seu irmão Pietro desde a morte de sua mãe [nota: no original em italiano, Remo parece escrever a palavra "falubardamento" que não existe - pedi ajuda aos professores Cicuto e Oriana do Instituto D'Ambrosio de Curitiba que generosamente me ofereceram a possibilidade de traduzir isso como "bombardeio". A prima Monica Venturelli, neta de Remo, acredita haver aí um erro de ortografia e que ele desejava escrever "bombardamento". Agradeço a Monica a gentileza de fazer toda a correção do original italiano e também corrigir um erro de entendimento deste tradutor: na minha tradução, quem perdeu a casa pelo bombardeio foi Pietro. Monica corrige: foi Armando. Não bastasse a guerra, nossos antepassados quase sofreram um novo ataque do tradutor brasileiro!]. Saúdo ao senhor e a todos vocês carinhosamente. Seu sobrinho, Remo Venturelli”]
Fonte: carta de Remo Venturelli a Mario Ferrari. O original desta carta me foi confiado pela tia Branca, a quem agradeço imensamente. A reprodução acima não foi alterada digitalmente.

Uma carta. Escrita por um sobrinho e endereçada a seu tio. De Remo Venturelli para Mario Ferrari. Da cidade de Savignano Sul Panaro, uma pequena cidade à beira do rio Panaro, vizinha às cidades de Vignola e de Zocca, na Emilia-Romagna, região norte da Itália, e endereçada a um tio morador de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, Brasil – sem envelope, sem selos. A data, 27 de abril de 1945, marca o final da 2ª. Guerra. O que diz esta carta? Seu início deveria ser lido em todos os jardins de infância do Brasil. Diz assim: “graças a vocês, brasileiros, nós fomos libertados dos fascistas”. Maravilhoso ler isso. Há uma linda gratidão aqui a esses “brasileiros”, vindos de longe, a esse tio que um dia partiu, um dia saiu de casa, um dia não voltou mais, e que agora retorna como brasileiro, um brasileiro libertador. O sobrinho Remo, que em português também significa o remo de um barco, aquilo que impulsiona, aquilo que vence a correnteza, este sobrinho inclui o tio entre os brasileiros. Tio que ele não via há pelo menos 19 anos, desde quando, em 1926, Mario veio para o Brasil. 19 anos de separação, 19 anos sem notícias, 19 anos de saudades. O único tio a sair da Itália, o único tio a emigrar – uma façanha? Um desatino? Mas como soube o sobrinho que seu tio morava no Brasil, e ainda mais em Passo Fundo? Como fazer esta carta chegar a seu destinatário? Pois bem: na casa do sobrinho, em que vivia com sua mãe Tereza, irmã de Mario, lá estava pregado no muro uma fotografia de Mario. Lá estava a presença de uma ausência. Uma fotografia. E não é que foi justamente um soldado do Brasil, um soldado de Passo Fundo a passar na frente desta casa um dia e dizer: “mas eu conheço este homem”! Magnífico! Através deste soldado, através deste pracinha de Passo Fundo, a carta foi escrita, a carta foi enviada, a carta chegou. Uma carta de agradecimento. Uma carta de reconhecimento. Uma carta de amor. Uma carta de morte. A morte de um irmão, o desaparecimento de outro, a morte da mãe. Uma carta de vida. Uma carta de reencontro. Uma carta de família.

PRIMEIRO PASSO

A meu pai, Carlos Ferrari, no dia de seu aniversário de 80 anos.
Na Itália, Cervara se pronuncia Tchêrvara, pois a letra “c” pode ter o som de “tchê”, o que, para um gaúcho é motivo de alegria e júbilo, pois o tchê faz parte da língua materna, daquela língua que do universal faz um particular, marca, faz morada, habita o coração sem pedir licença nem se importar com a pose de quem se acha dono dela. Essa língua desliza, mistura, evoca, inventa, repete – de geração em geração. Ao querer falar da Itália, eis que se fala do Brasil. Ao querer falar do avô, eis que se fala também de muitos – inclusive de si mesmo. História da família? Um pouco. Arqueologia? Outro pouco. Invenção? Muita. Travessia.