Fotografia de Ralph Gibson em São Francisco, Califórnia, entre 1960 e 1961.
Antes de ser possidente, Marco foi possuído, foi habitado por histórias, lendas, contos de fadas, sussurros e gritos, e o modo próprio como traduziu, reinterpretou, deu um sentido outro a cada palavra que lhe foi passada, transmitida, mesmo e principalmente aquelas ditas sem querer, escutadas pela metade, nunca pronunciadas mas presentes como se tivessem sido.
Para uma criança italiana do início do século XIX, pelo menos quatro histórias circulavam de mão em mão, de boca em boca, de pé em pé. A primeira delas, escrita em 1300, por um vizinho dali, um que até andou por ali, capengante, coxo, manco, de nome de família Alighieri, mais conhecido como Dante, fala de uma viagem pelo inferno, através do inferno, uma travessia do impossível, de uma terra desconhecida, de onde nenhum viajante tinha voltado até então. É verdade que Homero e Virgílio deram notícias dali. Mas Dante foi diferente. Ele fez do Inferno morada. Pela espiral do alfabeto, de a à z, ele mapeia este lugar, ele desfalece, se levanta, ele conta e acerta as contas, narrando, descrevendo, dando nomes ao inominável, fazendo de cada passo uma aventura a ser passada agora, de geração em geração, sobre o modo que encontrou de trabalhar o luto, a dor de ter perdido para sempre uma Itália chamada Beatriz.
A segunda história, dois anos mais antiga, foi contada por um viajante a seu colega de prisão em Gênova no ano de 1298, que depois a transformou em um relato conhecido como O Livro das Maravilhas ou O Livro de Marco Polo. Na abertura, seu narrador, Rusticiano de Pisa, faz a seguinte armadilha para o leitor, prepara uma isca admirável:
“E jamais a homem algum, cristão, tártaro ou pagão, foi dado a ver o que Misser Marco Polo, filho do nobre Nicola Polo de Veneza, pôde ver pelo mundo...”
Em seguida, no primeiro capítulo, ele dá o tom que vai seguir no livro inteiro:
“Aqui começa a introdução do livro denominado: A Descrição do Mundo”.
Quem não se sente imediatamente capturado, apaixonado, louco para ler sem parar, para ver o que este homem viu, viajar junto com ele, chegar lá, seja lá o que for, seja lá onde for? Que mundo foi dado a ver a Marco Polo? Não mais o mundo dos mortos, mas sim o mundo dos invisíveis: os persas, os tártaros, a Armênia, a Índia, as províncias da Ásia Menor e um lugar chamado China. Dezesseis anos na China. Não foram dois, não foram quatro anos, foram dezesseis. É como se subitamente o viajante tivesse chegado lá, ancorado lá, parado sua deriva. Mas, tal como Ulisses, havia de voltar, havia de contar. De passagem, outros mundos se deram a ver, um pedaço da Indochina, do Ceilão, das costas da Arábia, da Etiópia, do litoral da África, de Zanzibar, até chegar à Ítaca-Veneza de novo. Mas não foi jamais a mesma Veneza. E para quem leu, para quem ouviu falar disso tudo, não foi jamais a mesma Itália. Algo havia se acendido, algo havia partido, algo havia sido perdido, algo havia sido encontrado.
A terceira história fala de um genovês leitor de Marco Polo. Seu nome: Cristóvão Colombo. O ano agora é 1492. Ele decide seguir os passos de Marco Polo e ir ao encontro do Grande Can, o Imperador da China, para instruí-lo na fé de Cristo. Pensando ter chegado ao mundo de Marco Polo, ele se torna o descobridor de Outro Mundo, a América.
A quarta história surge nas ruas de Módena em meados do século XVI. Anônima, ela vai crescendo, vai ganhando detalhes cada vez mais picantes, vai sendo transformada e reelaborada, amassada e recortada. Seu nome: o país da Cocanha. Não mais o Inferno de Dante, não mais o Purgatório de Marco Polo, não mais aquele Paraíso de Colombo. O Paraíso da Cocanha é outro. É outra promessa. Para lá do Oceano. Marco escutou isso. Muitos anos depois, quando se tornou pai, ele fez questão de falar disso a seus filhos.