sábado, 31 de março de 2012

SUSSURROS

Parece que o único depoimento existente sobre Marco Giovanni Ferrari tenha sido falado por seu neto Luigi, filho de Valentino Cesare, e recolhido por Marino. 
 
Isso é um mistério. Mario, filho de Valentino, não falava de seu avô Marco a seus filhos? Falava de seu pai? Por que na sala de visitas das casas onde morou no Rio Grande do Sul, constava duas grandes fotografias, uma de sua mãe, outra de sua tia materna com o marido, mas não de seu pai?


Meu pai, por exemplo, nunca ouviu falar de seu bisavô Marco Giovanni. Tampouco nada sabe sobre seu avô, Valentino Cesare. 
 
Quem mais soube de Marco Giovanni além de Luigi? Quem mais sabe sobre Valentino Cesare além das pouquíssimas informações que irão aparecer aqui – parcas, mínimas, um pequeno fragmento de uma história?

sexta-feira, 30 de março de 2012

VALENTINO CESARE FERRARI

A comuna de Zocca em 2012. Fotografia de “Paesi on Line”.

Valentino Cesare Ferrari está registrado no Livro de Batismo nº 880 da Igreja San Leonardo de Rosola, comuna de Zocca. Este documento eu não tenho, porém o vi nas mãos da prima Ester e o texto diz assim:

 
“Nº 880 Libbro Battesimo
15/2/1848
Valentino Cesare figlio di Marco del fu [falecido] Giambattista Ferrari e dela Maria di [filha de] Carlo Flandi consorte [casal] habitante nella questa paroquia nato ieri notte 14/2/1848 alle ore 11 e mezza pomeridiane e stato solenemente batisato da me pároco oggi dopo pranzo [nascido nesta paróquia ontem à noite às 11 e meia e batizado hoje após o almoço].
Madrinha: Maria Bartolucci nubili [solteira, não casada] sorella [irmã] del pároco.
Pároco: Domenico Bartolucci.
Profissão: Operaio calciolaio [sapateiro]. Giornalero [trabalhava por dia].
[há duas notas escritas em português do que eu li em italiano: ‘não sabia ler’; ‘morreu em 6/10/1927 em Savignano sul Panaro’]”

 
Valentino Cesare Ferrari é o pai de Mario Ferrari.

 
Através deste documento, se descobre o fim de Cervara, o fim de “possidente” [proprietário] e a passagem para “calciolaio”, sapateiro. E o detalhe intrigante de que Valentino Cesare não sabia ler – o que pode indicar que ele já teria nascido, dezoito anos antes do pai morrer, bem longe de Cervara. 

 
Sobre isso, o primo Marino Ferrari fez um comentário do que teria ouvido de seu pai Luigi, irmão de Mario, sobre seu bisavô, Marco, ter sido um homem muito generoso, muito bom e que emprestava dinheiro a amigos que depois não devolviam, e que daí teria se originado a perda de Cervara. Pode ser verdade, porém essa é um pouco a descrição que Marino deu de sua própria vida nos negócios – ter tido muito numa época e depois ter perdido isso. Também vem de Marino, através de seu pai, a informação de que Valentino teve um irmão padre e outro que se tornou carabinière, policial. De qualquer forma, Valentino Cesare Ferrari parece ter nascido e vivido sob a crise dessa perda e da mudança do campo para a cidade, de Cervara para Zocca e região, de proprietário para sapateiro. Paraíso perdido? Quem disse que Cervara era o paraíso?

quinta-feira, 29 de março de 2012

RÉQUIEM PARA UM FERREIRO

“La Nuit étoilée” [A noite estrelada], Saint Rémy, junho de 1889 de Vincent van Gogh in MoMA, The Museum of Modern Art, Nova Iorque.

Marco Giovanni Ferrari, Faber ferrarius, mestre artesão. 
Um ferreiro lavrador, que pôs as mãos na terra para escavar,

para sulcar, para plantar, para retirar dela o objeto escondido,
o objeto perdido. Não achou.
Achou o metal incandescente, o metalitálico, corpo sideral.
Desse desencontro fez canções, as de ninar, 

no berço de seus doze filhos,
as das histórias das viagens de Dante, de Colombo, de Marco Polo,
as do país da Cocanha, mundos novos, o espaço sideral, 

Oceano Panaro.
Este homem, entre fiandeiras e costureiras, à beira do rio,
andou, coxeou, cambaleou, caiu, desfaleceu, morreu.
Restou uma centelha, dentre as ruínas, uma fagulha,
fogo ascendente, a iluminar a névoa.
Desnévoa agora.

quarta-feira, 28 de março de 2012

O TEMPO DA DESPEDIDA

Montagem de fotografias da casa de Cervara no álbum da família feita por Belkiss Ferrari em julho de 1994. Fotografia da montagem por Bernardo Ferrari, em 27 de março de 2012.

Talvez Marco Giovanni Ferrari tenha recebido parte de Cervara ou a casa toda de seus pais. Talvez Marco Giovanni tenha adquirido o terreno e feito a construção no período de sua vida. Não se sabe. O que se sabe é que Cervara foi uma casa grandiosa, uma verdadeira mansão, um palácio ou castelo no alto da montanha, à beira do rio Panaro. Na descrição da querida prima Ester, a casa era pintada de “vermelho Módena”, tinha vários quartos bem delimitados, inclusive com ferrolhos nas portas – talvez até para dividir a casa em duas, quem sabe para uma nova família Ferrari ali instalada ou quem sabe para os próprios pais de Marco Giovanni. Havia um sótão com fácil acesso a uma parte do telhado utilizada para secagem de grãos. Uma sala imensa, com uma lareira e, bem ao lado da lareira, uma estante de livros! Era ali que a família se reunia no inverno, se esquentava ao pé do fogo, liam para si e liam em voz alta para todos. Lá fora, um estábulo grande, para a criação de vacas, a produção do leite, matéria-prima para o Parmigiano, o queijo. Também havia no lado de fora da casa um enorme forno para assar pão, castanhas e outros alimentos. No terreno em volta, havia vestígios de antigas construções, quem sabe o lugar onde se criavam outros animais, inclusive porcos. Os campos ao redor, extremamente férteis. Havia quatro gigantescas castanheiras ao lado da casa e, certamente, o cultivo de muitas árvores frutíferas por ali. A casa foi construída no alto de uma colina e no sopé havia um bosque. Quando nasceu Anna Juliana, sua 12ª e última filha, eles ainda habitavam em Cervara. Talvez Marco Giovanni tenha morrido em Cervara. Ele morreu em 11 de abril de 1866, aos sessenta e quatro anos de idade. Anna Juliana tinha treze anos e Valentino Cesare, dezoito anos.

terça-feira, 27 de março de 2012

VIVA ITÁLIA!

Emigração para o Brasil, Argentina, Estados Unidos e Canadá entre 1880 e 1915. Fonte: Mark I. Choate in Emigrant Nation: The Making of Italy Abroad. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2008, p. 238.

Quando nasceu a 12ª filha de Marco Giovanni e de Maria Flandi, ela recebeu o nome de Anna Juliana Ferrari. Data de nascimento: 27 de julho de 1853. Esta data marca o início da unificação italiana, da criação da nacionalidade italiana. E também marca o início da grande emigração italiana para o mundo. É curioso registrar – ver quadro acima – que houve um período, entre 1885 e 1890, que o Brasil foi o destino preferido dos emigrantes – só muito depois substituído pelos Estados Unidos.

 
Sobre esse período, o historiador brasileiro João Fábio Bertonha, no indispensável “Os Italianos”, diz o seguinte:

 
“Quando da unificação, não mais que 2,5% dos habitantes do novo reino falavam italiano, quase todos membros da elite, e mesmo muitos desses só o usavam em certas ocasiões e não no dia-a-dia. Todos os outros falavam dialeto – napolitano, vêneto, piemontês e outros – e tão incompreensíveis entre si que alguns professores piemonteses, enviados a escolas da Sicília em fins do século XIX, foram tomados por ingleses pela população local. Em 1860, segundo algumas fontes, os camponeses sicilianos que viram o Exército de Garibaldi invadir a ilha aos gritos de “Viva Garibaldi! Viva a Itália!” teriam imaginado que Itália seria sua esposa, tão abstrato era, para eles, o conceito de “Itália”. (...) Compreende-se, assim, a famosa frase do piemontês Massimo d’Azeglio (1792-1866), segundo o qual “Fizemos a Itália; agora precisamos fazer os italianos”.”
Fonte: João Fábio Bertonha in Os Italianos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 56.

 
Marco Giovanni Ferrari, aos cinquenta e um anos em 1853, pai pela última vez de seu 12º filho, viu com preocupação essas duas mudanças que se iniciavam. Uma, dentro de sua Emília-Romanha, e a outra para fora dela. Será possível continuar nessa terra, será possível permanecer aqui quando tudo parece estar mudando?

segunda-feira, 26 de março de 2012

TEMPO DA COLHEITA

Anúncio do “Prosciutto di San Daniele” [presunto cru de San Daniele], fabricado por um consórcio, uma cooperativa de produtores de San Daniele del Friuli, em Udine, Itália. Só utiliza porcos criados em dez regiões do Norte da Itália, dentre elas a Emilia Romagna. O anúncio foi publicado em página inteira do jornal La Repubblicca de Roma em 14 de novembro de 2010.

Na brincadeira do querido primo Marino diante do fato de Marco Giovanni e Maria Flandi terem tido doze filhos, ou seja, o que mais havia para se fazer em Cervara, há um enigma muito interessante. O que se fazia em Cervara além de filhos, é claro?

A resposta precisa de uma precisão maior na pergunta. O que fazia uma família de “possidentes” (donos da terra, donos da propriedade) de Cervara? E isso é muito importante, porque a primeira resposta é que eles não precisavam trabalhar só para os outros, não precisavam ser servos nem servidores de uma Itália ainda feudal no campo, bem longe do imaginário de uma Itália unificada e/ou renascentista, por exemplo. A Itália feudal permanece ainda hoje incrustada em cada cidadezinha, em cada povoado, em cada pedaço da Itália moderna. É por causa dela que teve início no século XIX a longa e impressionante emigração de seu povo, faminto, miserável, sem terra para plantar, sem terra onde viver, sem trabalho devido à “revolução” industrial que se aproximava lentamente com a promessa de suas máquinas “maravilhosas”, cuja primeira e mais cruel consequência foi não ter previsto nem ter se importado minimamente sobre o que fazer com quem era “substituído”, ou seja, o “resto” de milhões de pessoas absurdamente exiladas do ganha pão de cada dia. Para essa massa de desarvorados, não havia mais pão e não havia mais cada dia.

Ora, desta vez, pelo menos até os dezoito anos de Valentino Cesare Ferrari, isso não aconteceu na família Ferrari. Havia Cervara. Havia comida, havia água, havia onde morar. Havia cultivo de grãos, havia estábulo de vacas, havia criação de porcos – ou seja: faziam em Cervara – e fazem ainda nesta região – dois dos maiores produtos de exportação da Itália de hoje: o presunto cru e o único queijo que se pode chamar de parmesão no mundo, o “Parmigiano Reggiano”. Isso se fazia em Cervara. Pelo menos enquanto Marco Giovanni Ferrari foi “possidente”. Em breve isso mudaria.

domingo, 25 de março de 2012

AURORAS


Detalhe do Livro de Batismo nº 339 da Igreja San Leonardo em Rosola, Zocca, província de Modena, Emilia-Romagna, Itália.

Marco Giovanni e Maria Flandi se casaram em 14 de outubro de 1831. O primeiro filho nasceu um ano depois, porém não sobreviveu. Se chamava Giovanni Battista Inocenzo, nascido em 4 de janeiro de 1832. No ano seguinte, nova tragédia. Anna Maria, nascida em 20 de fevereiro de 1833, também não sobreviveu. Assim também no ano seguinte, quando nasceu Giovanni Batista Isidoro em 4 de abril de 1834. Somente em 12 de junho de 1835, com o nascimento de Pietro Giacomo, eles puderam comemorar. Pietro Giacomo é o único de todos os filhos a estar registrado com a “condizione, professione, od arte” [condição, profissão ou arte] de “studente”, estudante – uma raridade na época. Dois anos depois, em 14 de maio de 1837, nasceu Anna Maria, profissão “sarta” [costureira] e a única das mulheres a se casar – segundo esta certidão de batismo. Ela se casou com Giovanni Benelli em data não registrada. De qualquer modo, eis aí novos primos em nossas vidas – quando encontrarmos um Benelli desta região da Itália, poderemos cumprimentá-lo com alegria: ali estará a presença de Anna Maria. Dois anos depois do nascimento de Anna Maria, em 11 de janeiro de 1839, nasceu Angiola, profissão “filatrice” [fiandeira]. Dois anos depois, em 16 de dezembro de 1841, nasce Domenico Eusébio. Aí, três anos depois, nasce Luigia Aurora Maria, em 9 de julho de 1844. Que nome mais lindo, Aurora! O que terá acontecido com ela? Terá sua vida cumprido esta promessa inscrita no próprio nome? O que se sabe é que, dois anos depois, em 20 de maio de 1846, nasceria Luigi. E então, dois anos depois, Valentino Cesare, em 15 de fevereiro de 1848. Mais uma vez, dois anos depois, novo nascimento: em 20 de outubro de 1850, Marco Domenico. Três anos depois, o último nascimento registrado: em 27 de julho de 1853, o nascimento de Anna Giuliana. Ela foi a 12ª e última filha deste casal. Como brincou o querido primo Marino diante desta espetacular quantidade, o que mais fazer em Cervara?

Há aqui quatro mistérios neste livro de batismo. O primeiro deles: os nomes de Maria Teresa, a irmã de Marco, dos filhos de Marco, Anna Maria e Angiola e de seu servidor Emilio Tonelli, estão riscados, com um traço horizontal. Provavelmente, isso significa que eles estão registrados também em outro livro de batismo. Da mesma forma o segundo mistério, que são os traços verticais sobre todos os nomes. Provavelmente isso indica a transferência desses registros para outro livro. O terceiro mistério é que as crianças que não sobreviveram, não estão registradas nesta página – assim, Giovanni Battista Inocenzo, Anna Maria e Giovanni Batista Isidoro, não aparecem registrados com seus irmãos. Talvez fosse um costume desses sacristãos-escreventes, o de registrar os recém-nascidos mortos em outro livro – provavelmente porque não houve tempo de batizá-los. O quarto mistério é que quase todos os nascimentos estão registrados em ordem cronológica da data de nascimento, exceto os nascimentos de Valentino e de Luigi. Estranhíssimo que Valentino, nascido em 1848, venha antes de Luigi, nascido dois anos antes. A hipótese é que eles tenham sido batizados bem mais velhos – porém, o mistério continua. A mais nova dos irmãos, Anna Giuliana, aparece na ordem certa – e se ela foi batizada logo, porque seus irmãos Valentino e Luigi não? Dentro deste mistério, por que o servidor Emilio Tonelli está registrado antes de Valentino e Luigi? Não faço ideia.  

sábado, 24 de março de 2012

OUTUBRO

Trecho do rio Panaro próximo a Formigine, província de Módena, por Daniela, “DenikaModdafuccka”, em 23 de junho de 2010.

Havia muitas pedras no meio do caminho. Mas um dia, em 14 de outubro de 1831, Marco Giovanni Ferrari se casou com Maria Flandi. Ele tinha 29 anos. Eles tiveram 12 filhos, dentro os quais Valentino Cesare, nascido em 15 de fevereiro de 1848.

sexta-feira, 23 de março de 2012

TRAVESSURAS

A estação de trem de Carazinho, Rio Grande do Sul, Brasil, aproximadamente 1920.


Para Jacques Lacan, in memoriam, que um dia escreveu sobre a letra no inconsciente e para Alduísio Moreira de Souza, analista querido, conhecedor da arte de atravessar os rios e os mares, os sertões e as veredas.

Giambattista lhe passou o “b” e o “a”.
Anna Ugolini lhe deu o “l”.
Marco Giovanni lhe trouxe o “r”.
Maria Flandi lhe deixou o “i”.
De seu pai, Valentino Cesare, veio o “s”.
B-R-A-S-I-L.
E assim Mario veio, pelo mar, pelo amar.
Por causa destas letras, à procura dessas letras.
Letras do desejo, letras paternas, letras maternas,
letras que se inscrevem sem pedir licença,
letras faladas desde o berço,
letras fundadas, letras fecundas.
Letras de amor.

quinta-feira, 22 de março de 2012

TRAVESSIAS

Fotografia de Nobuo Asada.

Marco Giovanni Ferrari, 1831. A travessia do rio Panaro.
Mario Ferrari, 1926. A travessia do Oceano Atlântico.
De avô para neto, no meio do caminho da vida,
atravessados pelo que não controlavam,
habitados por fantasias diferentes, palavras outras,
pensamentos inquietantes e sonhos estranhos, tropeços dolorosos,
foram levados a saírem de perto de si mesmos.
Um foi parar ali ao lado, em Verica. De onde voltou acompanhado.
O outro foi parar bem longe, no Brasil. De onde nunca mais retornou.

quarta-feira, 21 de março de 2012

DE UMA MARGEM À OUTRA

A Ponte de Olina, construída em 1522, sobre o rio Panaro, na comuna de Pavullo nel Frignano, província de Módena, Emília-Romanha, Itália. Fonte: Wikipedia.

Seus olhos, a luz. Seu olhar, a Vênus. Seus olhos, contrastes. Seu olhar, o movimento dos pés dela nas águas daquele rio, corrente, rio, constante, rio, caudaloso, rio, Amazonas, rio, Grande do Sul, rio, Iguaçu, rio, de Janeiro, rio, cá é rasinho rio, o Jordan’s. Seus olhos, reflexos. Seu olhar, a passagem de uma margem à outra, um pulo, raso, um salto, raso, uma caminhada pelo leito dela, do rio, pela beira dela, do rio, por dentro do rio, o Panaro, afluente do Pó, daquele que viestes e daquele que, não, ainda não. Seus olhos, líquidos. Seu olhar, a bolsa no ventre dela, madonna, a bolsa ou a vida, como se escolha houvesse. Seus olhos, semi-abertos, semicerrados. Seu olhar, mesmo no sono, em sonhos, o sorriso dela disfarçado, aquele que lhe fez dar a volta, desfigurado, entrecortado, as cordas do cordão rompido, o umbilical, a vida em haver, créditos de um débito. Seus olhos, é dia. Seu olhar, é tempo. Para seus olhos, um vulto. Para seu olhar, Maria Flandi. Mia donna.

terça-feira, 20 de março de 2012

DO OUTRO LADO DO RIO


Detalhe do quadro “O Casal Arnolfini” de Jan van Eyck, 1434, óleo sobre tábua in Natinal Gallery, Londres.

Marco Giovanni Ferrari, filho de Giambattista Ferrari e de Anna Ugolini, nascido em 1º. de novembro de 1802 em Rosola, se casou, em 1831, com Maria Flandi, filha de Carlo Flandi e Maria Fulgeri, oriunda de Verica.

Sobre este casamento, a querida prima Ester falava com lágrimas nos olhos. Para ela, Marco Giovanni um dia viu, do outro lado do rio Panaro, que passava rente, colado à sua casa, em Cervara, Maria Flandi. O que fazia Maria Flandi do outro lado do rio? É aqui que minhas lágrimas começam. Estaria ela se banhando, como Betsabé o fez, lentamente, para o rei Davi – que se viu subitamente rei de nada diante daquela beleza? Quero pensar em Betsabé mas um verso se intromete subitamente, o verso de Dante que anuncia Matelda, “come si volge, con le piante strette a terra e intra sé, donna che balli”, com os pés bem rentes ao chão ela rodopia, bailarina graciosa, “e piede innanzi piede a pena mette”, e pé ante pé, pés manhosos, pés arteiros, “volsesi in su i vermigli e in su i gialli fioretti verso me, no altrimenti che vergine che li occhi onesti avvalli”, a Marco se voltou lá na campina, lá na montanha, lá na beira-rio, lá em Cervara, vermelha e amarela, outono que se aproxima, à graça virginal de Maria Flandi – seria ela de origem francesa? Holandesa? Belga? “Tosto che fu lá dove l’erbe sono bagnate già da l’onde del bel fiume, di levar li occhi suoi mi fece dono”, então chegada ao ponto, à ponte, em que a fina erva era banhada pela água cristalina do rio Panaro, rio da vida, rio do amor, ela deu a mão para Marco na travessia, ela deu a graça de nos olhos dele descansar os seus, para daí ele fazer o pedido decisivo – o de toda a vida.

domingo, 18 de março de 2012

O SONHO DA RAZÃO

“Fuzilamentos de 3 de maio de 1808” de Francisco de Goya, Espanha, pintado em 1814 como um retrato da passagem de Napoleão pela Espanha.

Marco Giovanni Ferrari nasceu em 1º de novembro de 1802 no território de Rosola, comuna de Zocca, província de Módena, região da Emilia-Romagna, Itália.


Desta descrição, apenas o último termo, “Itália” não existia em 1802. Se Marco tivesse nascido cinco anos antes, em 1797, ele teria respirado brevemente o ar do que se chamava na época de Ducado de Módena. Porém, cinco anos depois, em 1802, toda essa região havia sido invadida por um francês chamado Napoleão Bonaparte e batizada com um novo nome: República Cisalpina. Falar em Napoleão é falar na Revolução Francesa. E falar em Revolução Francesa é falar no fim do feudalismo, o fim de uma época, e o advento de um novo sujeito chamado “cidadãos livres e iguais perante a lei”. Começava a nascer ali a ideia de nação ou, em italiano, o Risorgimento, ressurgimento, a criação de um Estado independente italiano.


Se antes de Napoleão, os Ferrari eram súditos de duques, príncipes, reis e Papas, com Napoleão eles passaram a ser súditos de um general francês. Como? Não era para virarem “cidadãos livres e iguais perante a lei”? É que fora da França, a França não era a França. Era Napoleão. Quem percebeu isso com uma dor enorme foi o grande artista espanhol Goya. Este homem que foi dormir e sonhar com a Revolução Francesa e os milagres que ela poderia fazer em sua Espanha miserável, acordou debaixo das botas de Napoleão. Sonhou com a razão, acordou com o monstro. Pois Marco Giovanni nasceu em uma região ocupada, cercada, vigiada a baionetas pelas tropas de Napoleão. Pior. Quando completou dez anos de idade, ele viu seus primos mais velhos serem convocados às armas, com milhares de napolitanos, toscanos e piemonteses, para participar de uma das maiores loucuras da história, a invasão da Rússia pelo exército francês. Não era a primeira vez que os Ferrari eram chamados à guerra, mas foi a primeira vez que tiveram que se deslocar a tão grande distância e, pior, em condições absurdamente miseráveis. Desnecessário dizer que de lá não voltou ninguém para contar a história. Essa tragédia, que já era uma farsa descomunal na época, retornaria igual um século e meio depois – trocando-se a bandeira da França pela da Alemanha. Aliás, diga-se de passagem que a bandeira atual é a dos Estados Unidos, onde italianos morrem diariamente no Iraque e no Afeganistão sob ordens gritadas em inglês. Risorgimento? Marco Giovanni tinha um problema nas mãos: como caminhar por ali sem perecer, sem se machucar demais, sem desaparecer.

sábado, 17 de março de 2012

MUNDOS NOVOS

Mapa do mundo do cartógrafo alemão Heinrich Hammer que viveu e trabalhou em Florença no período de 1480 a 1496. Lá ele ficou conhecido como Henricus Martellus Germanus. É provável que Colombo tenha utilizado este mapa para convencer os reis católicos da Espanha, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, a patrocinar sua viagem. Através deste mapa, ele provou que não havia grande distância entre a Europa e a China pelo oceano. O mapa também foi o primeiro a mostrar a passagem, a dobra do Cabo da Boa Esperança feita pelos portugueses no sul da África em 1488.

Carlo Ginzburg no seu belíssimo O Queijo e os Vermes (Il Formaggio e i vermi) traz uma outra versão do País da Cocanha, publicada quase que na mesma época, menos bem-humorada ou, nas palavras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), menos dionisíaca e mais apolínea, menos  embriagadora, menos o que deve vir e mais o que é, mais medida, mais harmonia:


“Já Anton Francesco Doni usou uma linguagem totalmente diversa numa das primeiras e mais conhecidas utopias italianas do século XVI: o diálogo, inserido no Mondi (1552), intitulado justamente: “Um mundo novo”. O tom aqui é seriíssimo; o conteúdo, diferente. A utopia de Doni não é camponesa como a do país da Cocanha, mas rigorosamente urbana, localizada numa cidade cuja planta tem forma de estrela. Além disso, os habitantes do “mundo novo” descrito por Doni levam uma vida sóbria (“me agrada esta ordem que apagou o vitupério das bebedeiras [...] o empanturramento de cinco, seis horas à mesa”), totalmente distante das pândegas da Cocanha. Entretanto, o mesmo Doni fundia o antigo mito da idade do ouro com o quadro de inocência e de pureza primitivas traçado pelos primeiros relatórios sobre o continente americano. A alusão àquelas terras estava implícita, somente: o mundo descrito por Doni era apenas “um mundo novo diverso deste”. Graças a essa ambígua expressão, pela primeira vez na literatura utópica o modelo da sociedade perfeita podia ser projetado no tempo, no futuro, e não no espaço, numa terra inacessível.”
Fonte: Carlo Ginzburg in O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 167.


Essas versões dos pais, seja a carnavalesca utopia camponesa da Cocanha, seja a quarta-feira de cinzas de Doni, passaram de Giambattista para seus filhos, dentro eles Marco Giovanni. De Marco Giovanni para seus filhos, dentre os quais, Valentino Cesare. De Valentino Cesare para seus filhos, dentre eles Mario Ferrari. De geração em geração, essas versões foram misturadas e remexidas, foram alteradas e ditas pela metade, ditas como brincadeira, ditas com seriedade, meio-ditas, mal ditas, bem ditas. Um dia, Mario faria com elas a sua versão.

quinta-feira, 15 de março de 2012

CHUVA DE RAVIÓLIS

“Schlaraffenland” (“Terra do leite e do mel”) de Pieter Brueghel, o velho (1525-1569), óleo sobre madeira (1567) in München Alte Pinakothek, Munique, Alemanha.

O grande historiador brasileiro  Hilário Franco Júnior assim inicia seu indispensável, imprescindível e maravilhoso “Cocanha – Várias Faces de  uma Utopia”:


“Cocagne, Cockaygne, Cuccagna, Bengodi, Cucaña, Chacona, Jauja, Schlaraffenland, Luilekkerland, São Saruê. Várias são as tradições folclóricas que falam no país da Cocanha, como mostram os textos e as imagens selecionados e traduzidos nesta antologia. Dos século XIII-XV, conhecemos ainda hoje oito representações literárias e iconográficas. Dos séculos XVI-XVII temos, dentre outras, 12 versões francesas, 22 alemãs, 33 italianas, 40 flamengas. Mesmo depois, apesar do recuo no interesse pelo tema, ele ainda foi objeto, por exemplo, de um quadro de Goya em fins do século XVIII e de um folheto de cordel brasileiro em meados do XX”


Fonte: Hilário Franco Júnior in Cocanha – Várias Faces de uma Utopia. Cotia: Ateliê Editorial, 1998, p. 9.


Já o historiador italiano Carlo Ginzburg, no meio do seu magistral “O Queijo e os Vermes” (Il formaggio e i vermi), assim passeia pelo lugar:


“Tomemos o Capitolo, qual narra tutto l’essere d’um mondo nuovo, trovato nel mar Oceano, cosa bela, et dilettevole, que surgiu anônimo em Modena, por volta de meados do século XVI. Trata-se de uma entre as muitas variações sobre o antigo tema do país da Cocanha (nomeado explicitamente no Capitolo e também na Begola contra la Bizaria, que o precede), localizado aqui entre as terras descobertas para lá do Oceano:


“Navegantes do Mar Oceano acharam/ há pouco tempo um divinal país,/um país jamais visto nem ouvido...”


A descrição repisa os motivos usuais da grandiosa utopia camponesa:


“Uma montanha de queijo ralado/ se vê sozinha em meio da planura,/e um caldeirão puseram-lhe no cimo.../Um rio de leite nasce de uma grota/e corre pelo meio do país,/seus taludes são feitos de ricota.../Ao rei do lugar chamam Bugalosso;/por ser o mais poltrão, foi feito rei;/qual um grande paiol, é grão e grosso/e do seu cu maná lhe vai manando/e quando cospe cospe marzipã;/tem peixes, não piolhos, na cabeça.”


Mas este “mundo novo” não é só o país da abundância: é também um país que não conhece os vínculos das instituições sociais. Não existe família, porque lá vigora a mais completa liberdade sexual.


“Não é preciso saia nem saiote/lá, nem calça ou camisa em tempo algum,/andam nus todos, homens e mulheres,/Não faz frio nem calor, de dia ou de noite,/vê-se cada um e toca-se à vontade:/oh que vida feliz, oh que bom tempo.../Lá não importa ter-se muitos filhos/a criar, como aqui entre nós;/pois quando chove, chovem raviólis./Ninguém se preocupa em casar as filhas,/que são posse comum e cada qual/satisfaz os seus próprios apetites.”


Não existe propriedade, porque o trabalho não é necessário, e tudo é comum a todos:


“Todos têm o que querem facilmente/e quem jamais pensasse em trabalhar/pra forca iria e o céu não o salva.../Lá não há camponês nem citadino,/todos são ricos, têm o que desejam,/que de frutos os plainos se carregam./Não se dividem campos nem herdades,/pois recursos abundam para todos/e o país vive plena liberdade.”


Esses elementos, reencontráveis (embora em menos detalhes) em quase todas as versões do país da Cocanha feitas no século XVI, são muito provavelmente exagero da imagem, já mítica, que os primeiros viajantes forneceram das terras descobertas além do Oceano e de seus habitantes: nudez e liberdade sexual, ausência de propriedade privada e de qualquer distinção social, num cenário de uma natureza extraordinariamente fértil e acolhedora.”


Fonte: Carlo Gizburg in O Queijo e os Vermes – O Cotidiano e as Idéias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, pp. 165-166.

quarta-feira, 14 de março de 2012

ALÉM DO OCEANO

Fotografia de Ralph Gibson em São Francisco, Califórnia, entre 1960 e 1961.

Antes de ser possidente, Marco foi possuído, foi habitado por histórias, lendas, contos de fadas, sussurros e gritos, e o modo próprio como traduziu, reinterpretou, deu um sentido outro a cada palavra que lhe foi passada, transmitida, mesmo e principalmente aquelas ditas sem querer, escutadas pela metade, nunca pronunciadas mas presentes como se tivessem sido.

Para uma criança italiana do início do século XIX, pelo menos quatro histórias circulavam de mão em mão, de boca em boca, de pé em pé. A primeira delas, escrita em 1300, por um vizinho dali, um que até andou por ali, capengante, coxo, manco, de nome de família Alighieri, mais conhecido como Dante, fala de uma viagem pelo inferno, através do inferno, uma travessia do impossível, de uma terra desconhecida, de onde nenhum viajante tinha voltado até então. É verdade que Homero e Virgílio deram notícias dali. Mas Dante foi diferente. Ele fez do Inferno morada. Pela espiral do alfabeto, de a à z, ele mapeia este lugar, ele desfalece, se levanta, ele conta e acerta as contas, narrando, descrevendo, dando nomes ao inominável, fazendo de cada passo uma aventura a ser passada agora, de geração em geração, sobre o modo que encontrou de trabalhar o luto, a dor de ter perdido para sempre uma Itália chamada Beatriz.

A segunda história, dois anos mais antiga, foi contada por um viajante a seu colega de prisão em Gênova no ano de 1298, que depois a transformou em um relato conhecido como O Livro das Maravilhas ou O Livro de Marco Polo. Na abertura, seu narrador, Rusticiano de Pisa, faz a seguinte armadilha para o leitor, prepara uma isca admirável:

“E jamais a homem algum, cristão, tártaro ou pagão, foi dado a ver o que Misser Marco Polo, filho do nobre Nicola Polo de Veneza, pôde ver pelo mundo...”

Em seguida, no primeiro capítulo, ele dá o tom que vai seguir no livro inteiro:

“Aqui começa a introdução do livro denominado: A Descrição do Mundo”. 

Quem não se sente imediatamente capturado, apaixonado, louco para ler sem parar, para ver o que este homem viu, viajar junto com ele, chegar lá, seja lá o que for, seja lá onde for? Que mundo foi dado a ver a Marco Polo? Não mais o mundo dos mortos, mas sim o mundo dos invisíveis: os persas, os tártaros, a Armênia, a Índia, as províncias da Ásia Menor e um lugar chamado China. Dezesseis anos na China. Não foram dois, não foram quatro anos, foram dezesseis. É como se subitamente o viajante tivesse chegado lá, ancorado lá, parado sua deriva. Mas, tal como Ulisses, havia de voltar, havia de contar. De passagem, outros mundos se deram a ver, um pedaço da Indochina, do Ceilão, das costas da Arábia, da Etiópia, do litoral da África, de Zanzibar, até chegar à Ítaca-Veneza de novo. Mas não foi jamais a mesma Veneza. E para quem leu, para quem ouviu falar disso tudo, não foi jamais a mesma Itália. Algo havia se acendido, algo havia partido, algo havia sido perdido, algo havia sido encontrado.

A terceira história fala de um genovês leitor de Marco Polo. Seu nome: Cristóvão Colombo. O ano agora é 1492. Ele decide seguir os passos de Marco Polo e ir ao encontro do Grande Can, o Imperador da China, para instruí-lo na fé de Cristo. Pensando ter chegado ao mundo de Marco Polo, ele se torna o descobridor de Outro Mundo, a América.

A quarta história surge nas ruas de Módena em meados do século XVI. Anônima, ela vai crescendo, vai ganhando detalhes cada vez mais picantes, vai sendo transformada e reelaborada, amassada e recortada. Seu nome: o país da Cocanha. Não mais o Inferno de Dante, não mais o Purgatório de Marco Polo, não mais aquele Paraíso de Colombo. O Paraíso da Cocanha é outro. É outra promessa.  Para lá do Oceano. Marco escutou isso. Muitos anos depois, quando se tornou pai, ele fez questão de falar disso a seus filhos.

terça-feira, 13 de março de 2012

POSSIDENTE

Detalhe do Livro de Batismo nº 339 da Igreja San Leonardo em Rosola, Zocca, província de Modena, Emilia-Romagna, Itália.

Marco Giovanni Ferrari nasceu em 1º de novembro de 1802, filho de Giambattista Ferrari e Anna Ugolini. Morreu em 11 de abril de 1866. Casado com Maria Flandi. Sua profissão, registrada no livro de batismo, era “possidente”, ou seja, dono, proprietário de um imóvel. Será que Marco herdou de seus pais esta propriedade? Será que a construiu no período de sua vida? O fato é que neste livro de batismo, é ele o possidente de Cervara. Mais: também aparece registrado ali um “servitore”, um empregado chamado Emilio Tonelli, filho de Domenico Tonelli e de Angela Santi, oriundo do povoado de Ranocchio, que faleceu em 30 de julho de 1857. Ora, se somarmos “possidente” mais “servitore”, o resultado é que Marco Giovanni Ferrari foi um homem rico, um homem de posses, um homem que herdou ou construiu uma verdadeira mansão no alto da montanha, à beira-rio. No lugar mais lindo da Itália. Ali viveu com sua irmã, Maria Teresa, com sua mulher, com seus filhos e com um servitore.

segunda-feira, 12 de março de 2012

BRIGIDA

“Mona Lisa”, entre 1503 e 1506, de Leonardo da Vinci Ferrari (1452-1519) in Museu do Louvre, Paris.
 
Brigida, nome francês ou nome celta?
Teria sido uma homenagem à família de sua mãe, Anna Ugolini?
Ugolini da França? Ugolini da Irlanda? Ugolini da Alemanha?
Ou uma deferência à santa padroeira da Suécia, Santa Brigida?
Afora que Santa Brigida também é nome de povoado na Lombardia.
Brigida: um nome, muitas perguntas.

domingo, 11 de março de 2012

MARIA

“Maria”, 1909, de Helene Schjerfbeck (Finlândia, 1862-1946), óleo sobre tela in Amos Anderson Kunstmuseum, Helsinki.
 
No bloco de anotações que fiz em 1994 na Itália, consta que Giambattista Ferrari e Anna Ugolinni tiveram três filhos: Maria Teresa, Marco Giovanni e Brigida Ferrari. Porém, no livro de batismo de Maria Teresa e Marco Giovanni, não há registro de Brigida Ferrari. Isso quer dizer que ela não habitava em Cervara. Não me lembro da prima Ester falar dela, só me lembro dela insistir que eu inscrevesse Brigida junto com Maria Teresa e com Marco Giovanni.

 
Em relação ao nascimento de Marco Giovanni, há também uma anotação curiosa. Reproduzo: 


“Nº 339, Libro Battesati Rosola, 1/11/1802. Ferrari Marco di GiamBattista Ferrari e Anna Ugolinni, conjuge. Batisato ore settimana del giorno 4/11/1802. Padrino: Francesco Bernardi e Ferrari Maria (zia de Marco, sorella de Giambattista). Paroco: Giuseppe Bellitti. Chiesa de Rosola, chiesa de San Leonardo”.

Nesta anotação, entre os padrinhos de batizado de Marco Giovanni está sua tia, a irmã de Giambattista, Maria Ferrari – não poderia ser sua irmã, Maria Teresa, que tinha dois anos na época. Então Giambattista Ferrari tinha uma irmã! E chamada Maria! Esse nome iria ser uma presença constante na história da família. Vejamos: Maria, irmã de Giambattista, Maria Teresa, filha de Giambattista, Maria Flandi, esposa de Marco Giovanni, Anna Maria, filha de Marco Giovanni, Maria Angela, filha de Emilietta (filha de Armando), Maria, filha de Erio (filho de Emílio Venturelli com Teresa Ferrari), Beatriz Maria, esposa de Carlos, minha mãe, tia Maria Helena, filha de Mario, Maria Angelina, filha de Fermino e Mariana, filha de Eduardo (filho de Maria Helena). Ora, o próprio nome Mario está bem próximo de Maria. Mas, essas curiosidades ficam para outro dia. Hoje Giambattista ganhou uma irmã: Maria. A madrinha de batismo de Marco Giovanni. Ela segurou-o no colo, ela lhe deu um banho de palavras queridas, ela cuidou desse menino. Maria.

sábado, 10 de março de 2012

AMANHÃ

“Miss Bowles” de Sir Joshua Reynolds, 1775, óleo sobre a tela in Wallace Collections, Londres.

Minha filha, ela disse, se casará com um príncipe.
Meu filho, ele disse, será dono desse lugar.
Maria Teresa nasceu em 25 de junho de 1800.
Marco Giovanni nasceu em 1º. de novembro de 1802.

“A criança deve ter melhor sorte que seus pais, não deve ser submetida aos mesmos imperativos que eles tiveram de acatar ao longo da vida. Doença, morte, renúncia à fruição, restrições à própria vontade não devem valer para a criança; as leis da natureza, assim como as da sociedade, devem se deter diante dela, e ela deve realmente tornar-se de novo o centro e a essência da criação do mundo. His Majesty the Baby, tal como nós mesmos nos imaginamos um dia. A criança deve satisfazer os sonhos e os desejos nunca realizados dos pais, tornar-se um grande homem e herói no lugar do pai, ou desposar um príncipe, a título de indenização tardia da mãe. O ponto mais vulnerável do sistema narcísico, a imortalidade do Eu, tão duramente encurralada pela realidade, ganha, assim, um refúgio seguro abrigando-se na criança.”

 
FREUD, Sigmund. À Guisa de Introdução ao Narcisismo (1914) in Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente, v. I, Rio de Janeiro: Imago, 2004, p.110.

sexta-feira, 9 de março de 2012

GALILEU

“Virgem com o Menino e São João Batista Criança” de Sandro Botticelli e ateliê, têmpera sobre a madeira, 1490-1500 in MASP – Museu de Arte de São Paulo. Fotografia MASP.

Giambattista Ferrari recebeu de seus pais o nome de um santo católico, João Batista. Ele e sua esposa, Anna Ugolini, deram a seus filhos Maria Teresa e Marco Giovanni nomes católicos, Maria, considerada como a mãe de Jesus, e Marco, outro santo, autor do evangelho de São Marcos. Pode-se afirmar com isso que eles eram católicos? Talvez. Porém, pode ser que Marco, Giovanni, Maria e Teresa também fossem nomes de antepassados, o que significaria aí a continuação da família através desses nomes. Por outro lado, em uma sociedade profundamente dominada pelo catolicismo, onde a Igreja era não só um poder espiritual, mas um poder governante que interferia em tudo, ter um nome católico asseguraria, de certo modo, uma inserção mais fácil ali. Ora, esse pelo menos parece ter sido o pensamento de Giambattista Ferrari. Com seu filho Marco Giovanni isso irá começar a mudar. Sobre o poder da Igreja Católica e das religiões em geral, há uma reflexão magnífica do gigante alemão Bertolt Brecht em sua peça de teatro chamada “Vida de Galileu”, escrita entre 1938 e 1939. Em uma Itália pouco anterior a Giambattista, Galileu, após ser interrogado pelo tribunal da Santa Inquisição, recebe a visita de um personagem chamado “o pequeno monge”:
 
“O Pequeno Monge – Mas quero lembrar outras razões. O senhor permita que eu lhe fale de mim. Nasci no campo, sou filho de camponeses. São gente simples. Sabem tudo sobre a oliveira, mas pouco além disso. Observando as fases de Vênus, vejo os meus pais diante de mim, sentados diante do fogão, com a minha irmã, comendo o seu queijo. Acima deles vejo o teto, escurecido pela fumaça de muitos séculos, e vejo bem as suas mãos velhas e deformadas, segurando a colher pequena. A vida deles não é boa, mas até a sua desgraça manifesta uma certa ordem. São os vários ciclos, desde o dia de lavar o chão, até as estações no olival, até o pagamento dos impostos. Há regularidade nos desastres que eles sofrem. As costas de meu pai vergam, mas não é de uma vez, é um pouco mais em cada primavera, trabalhando nas oliveiras; e os partos, é a mesma coisa, vinham regularmente, até deixar a minha mãe acabada. Para subir por esses caminhos desgraçados, arrastando um cesto e pingando suor, para parir filhos os filhos, e até para comer, é preciso ter força, e essa força de onde é que eles tiram, se não do sentimento da constância e a necessidade, que lhes vem olhando os campos, olhando as árvores, que reverdecem todos os anos, vendo a igreja pequena, ouvindo a Bíblia aos domingos. Eles estão seguros – foram ensinados assim – de que o olho de Deus está posto neles, atento, quase ansioso, de que o espetáculo do mundo foi construído em torno deles, para que eles, os atores, pudessem desempenhar os seus papéis grandes ou pequenos. Que diria a minha gente se ouvisse de mim que moram num pedaço pequeno de rocha que gira ininterruptamente no espaço vazio, à volta de outra estrela, um pedaço entre muitos, sem maior expressão? Para que tanta paciência e resignação diante da miséria? Elas não ficariam sem cabimento? Qual é o cabimento da Sagrada Escritura que explicou tudo e que disse que tudo é necessário, o suor, a paciência, a fome, a submissão, se ela agora está toda errada? Não, eu vejo os olhos deles ficarem ariscos, vejo como descansam a colher, vejo como eles se sentem traídos e esbulhados. Então o olho não está posto em nós, é o que pensam. Nós é que precisamos cuidar de nós mesmos, sem instrução, velhos e acabados como estamos? Nenhum papel nos foi destinado, afora este papel terreno e lamentável, numa estrela minúscula, inteiramente dependente, que não tem nada girando à sua própria volta? Não há sentido na nossa miséria; a fome não é prova de fortaleza, é apenas não ter comido; esforço é vergar as costas e arrastar, não é mérito. O senhor compreende agora a verdadeira misericórdia maternal, a grande bondade da alma que eu vejo no Decreto da Santa Congregação.

 
Galileu – Bondade da alma! Provavelmente, o que o senhor quer dizer é só que não sobrou nada, que o vinho foi bebido, que a boca deles está seca, de modo que o melhor é beijar a batina! Mas por que não há nada? Por que é que só é ordem, neste país, a ordem da gaveta vazia? E necessidade só existe a de se matar no trabalho? Em meio das vinhas carregadas, ao pé dos trigais! Seus camponeses pagam a guerra que o Vigário do suave Filho de Deus provoca na Espanha e na Alemanha. Por que ele põe a Terra no centro do universo? Para que o trono de Pedro possa ficar no centro da Terra! É isso que importa. O senhor tem razão, não são os planetas que importam, são os camponeses. E o senhor, não me venha com a beleza dos fenômenos que o tempo redourou! O senhor sabe como a ostra margaritífera produz sua pérola? É uma doença de vida ou morte. Ela envolve um corpo estranho, intolerável para ela, um grão de areia, por exemplo, numa bola de gosma. Ela quase morre no processo. A pérola que vá para o diabo. Eu prefiro a ostra com saúde. A miséria não é condição das virtudes, meu amigo. Se a sua gente fosse abastada e feliz, aprenderia as virtudes da abastança e da felicidade. Hoje, a virtude dos exaustos nasce da terra exausta, e eu abomino isso. Meu caro, as minhas novas bombas d’água fazem mais milagre do que a sua ridícula trabalheira sobre-humana. – “Crescei e multiplicai-vos”, pois os campos são estéreis e a guerra vos dizima. O senhor quer que eu minta à sua gente?”

 
Fonte: Bertolt Brecht em Vida de Galileu in Teatro Completo 6. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, pp. 119-120.

quinta-feira, 8 de março de 2012

GIAMBATTISTA FERRARI E ANNA UGOLINI

Pintura de Pompeia, casa dita de Terêncio Neo. Retrato de um casal, anterior a 79 a.C. Fonte: Museu Arqueológico de Nápoles.

No registro de batismo de Maria Teresa Ferrari, aparecem pela primeira e única vez neste livro de batismo, os nomes dos pais de Maria Teresa e de Marco Giovanni Ferrari: Giambattista Ferrari e Anna Ugolini. Não há mais nada. Nenhuma linha a mais, nada sobre a data e o lugar de nascimento deles, sequer se a casa de Cervara já era a casa deles ou não, e se Maria Teresa e Marco foram seus únicos filhos – algo bastante improvável. De qualquer modo, a partir daí, deste único registro, pode-se concluir que os Ferrari que vieram depois, trazem não só as marcas desse primeiro Ferrari conhecido, Giambattista, aquele que fez passar o nome Ferrari adiante, como também desta Anna Ugolini – em outras palavras, somos, sem saber, filhos dessa mistura, de um Ferrari com uma Ugolini. Há Ugolini em nós. Difícil e quase impossível identificar que marcas seriam essas. Na névoa, tateemos. Ugolini, ao contrário de Ferrari, não identifica uma profissão, um ofício, uma prática. É um nome derivado de outro nome, Ugo, um nome alemão. Ora, teria Anna Ugolini origem alemã?  O que sabemos é que um dia Giambattista encontrou Anna. Um dia eles se casaram. Um dia eles tiveram primeiro Maria Teresa e, dois anos depois, Marco Giovanni. 

O grande historiador francês Paul Veyne, quando recebeu a tarefa de abrir a monumental História da Vida Privada, série de cinco livros, com uma análise do Império Romano, tinha uma pintura nas mãos. Uma pintura encontrada na parede da casa de um antigo morador de Pompeia. E aí, ele diz assim:

“Com eles o gelo logo se rompe: para conhecê-los basta fitá-los nos olhos; eles mesmos nos olham assim. Em todas as suas épocas a arte do retrato não comporta semelhante troca de olhares. Este homem e essa mulher não são objetos, pois nos veem; porém, nada fazem para nos provocar, seduzir, convencer ou entremostrar alguma interioridade que não mais ousaríamos julgar. Percebem menos nossa presença do que se oferecem tranquilamente aos olhos do mundo: nossa presença é natural, e eles mesmos se acham naturais; são o que nós somos, e os olhares se trocam com igualdade por um valor comum (...). O pai de família e sua esposa não fazem pose nem mímica; a roupa de ambos não ostenta sinais sociais nem símbolos políticos – a roupa não faz a pessoa; o cenário é vazio: diante desse fundo neutro, o indivíduo é ele mesmo e seria o mesmo em qualquer lugar. Verdade, universalidade, humanidade. A mulher concentrou a elegância no penteado e não usa joias (...); esse homem e essa mulher eram ricos o bastante para mandar pintar seu retrato. Também são indivíduos apenas na aparência; seu retrato, que poderíamos tomar por uma foto instantânea, como que por acaso lhes fixou a identidade na faixa dos quarenta anos, em que se acabou de crescer e ainda não se começou a envelhecer (...). O marido e a mulher detêm os atributos menos contestáveis e mais pessoais de sua superioridade social; não a bolsa ou a espada, atributos da riqueza e do poder, mas um livro, tabuinhas de escrever e um estilete. Esse ideal de cultura é natural: o livro e o estilete visivelmente são para eles instrumentos familiares que o casal não ostenta. Coisa bastante rara na arte antiga, que não aprecia os gestos familiares, o homem expectante apoia o queixo no livro (em forma de rolo), e a mulher pensativa leva o estilete aos lábios: procura um verso, pois a poesia também é uma arte das damas. Um Michelangelo há de gostar dos gestos “autísticos” (seu Moisés distraidamente acaricia a própria barba): revelam nele a sombra de uma dúvida ou de um sonho.”
Fonte: Paul Veyne em O Império Romano in História da Vida Privada v. 1. São Paulo: Cia. das Letras, 2009, pp. 19-20.

Um dia, quem sabe, qualquer dia, saberemos mais de Giambattista Ferrari e de Anna Ugolini. Hoje, fiquemos com o retrato de seus nomes. Não é pouco.

quarta-feira, 7 de março de 2012

FERREIRA

“La fileuse, chevrière auvergnate” [A fiandeira, guardiã de cabras de Auvergne], óleo sobre tela, 1868-1869, de Jean-François Millet (1814-1875) no Musée d’Orsay de Paris. Fotografia de Ondra Havala no museu, em 27 de agosto de 2009.

Maria Teresa, jovem contadina, não coitadinha, mas camponesa, mulher rendeira, fia a lã com o fuso, enquanto cuida das cabras, as provedoras do fio, da lã. Ela com seus sapatos de madeira, seu vestido de lã, seu chapéu feito no tempo, sentada sobre uma colina, fia e desfia, desafia o fuso, Penélope sem Ulisses. A tarde cai agora em Cervara. A tecedora tecida, Maria Teresa, vai serena, levanta-se e começa a caminhar. Suas mãos passaram mais um dia dando forma ao informe – na lã, nos fios, na trama que urdiu, ferreira de tecidos que é. Sua forja não está lá fora. Está dentro de si.

terça-feira, 6 de março de 2012

MARIA TERESA

“La Fileuse” [A fiandeira], 1873, com fuso e roca, de William Adolphe Bouguereau (1825-1905), óleo sobre tela. Fonte: Wikipédia.
 
Na primeira linha do livro de batismo, uma surpresa. A mais velha moradora da casa de Cervara era a irmã de Marco, Maria Teresa Ferrari, filha de Giambattista Ferrari e de Anna Ugolini. Ela nasceu em Rosola em 25 de junho de 1800, dois anos antes de Marco. Era “filatrice”, fiandeira, e morreu em 12 de julho de 1859. Maria Teresa nunca se casou.

segunda-feira, 5 de março de 2012

VIAGEM À CERVARA


1a. parte do vídeo - pode ser assistido em tamanho e cores melhores no endereço http://www.youtube.com/watch?v=SuheRdHvwpk
2a. parte do vídeo - pode ser assistido em tamanho e cores melhores no endereço http://www.youtube.com/watch?v=pkEHpDAbLpM


Os queridos primos Marino e Ester nunca tinham estado lá. Descobriram sua existência pouco antes da nossa chegada à Itália em 1994. E nos legaram este presente maravilhoso, a ida até a casa de Cervara, a casa onde Marco Giovanni Ferrari viveu com sua esposa Maria Flandi, com seus filhos e com sua irmã, Maria Teresa. Graças ao padre Sérgio, do Santuário da cidade de Verucchia, vizinha à Rosola, que indicou aos primos a única pessoa de região que sabia onde se localizava a casa de Cervara: Anselmo Biagini. Então, a primeira parada para Cervara, a casa de Anselmo, a casa Mazera em Rosola. De lá, este guia inesquecível, a própria alma do contadino, do camponês italiano, um homem que, durante a ocupação nazista na 2ª. Guerra, escondeu os sinos da Igreja para que eles não fossem derretidos pelos fascistas. Só depois da guerra terminada é que os sinos foram levados de volta ao seu lugar. Anselmo com seu dialeto difícil nos levou pela mão até Cervara. Fomos de carro até um trecho e depois, só à pé. Nas palavras epifânicas de minha filha Andréa, então com oito anos de idade, lá seguimos pelo “bosque lamento” em uma região de indescritível beleza, um pedaço de montanha à beira do rio Panaro. Um subida árdua, difícil, ainda mais para Belkiss, grávida de quatro meses do Bernardo, e que não podia fazer esforço físico demasiado devido a algumas complicações da gravidez. A filmagem foi toda extremamente inviável, pois a câmara usada que tínhamos comprado no Brasil demonstrou ser uma espécie de bomba-relógio. Ela travava, as baterias duravam cinco minutos e paravam de funcionar, as imagens captadas ora eram boas, ora estavam misturadas com zumbidos estranhos, tremores insanos, enfim, um drama. Porém, eis aqui o único documento filmado desta casa. Quando nos aproximamos do alto da montanha, lá estava ela, ruínas lindas, ruínas silenciosas, ruínas falantes, ruínas de um outro tempo, de outras vidas, mas agora ruínas do nosso tempo, das nossas vidas – ruínas-espelhos. Como Colombo, havíamos feito uma travessia. Lamentavelmente, foi a última vez que Marino e Ester viram Cervara. Um tempo depois eles se despediram de todos nós. Outro tempo depois e soubemos que a casa não existia mais. Tinha sido posta abaixo, destruída para a construção de não sei o quê sobre ela. Não interessa. A casa de Cervara está aqui agora. Graças aos primos Marino e Ester, in memoriam. Graças ao padre Sérgio e a Anselmo. Graças à pesquisa incansável de Ester e à aula admirável que ela dá neste vídeo sobre arquitetura e história, generosa senhora. Graças ao humor inesquecível de Marino. Graças à Belkiss, que quis por que quis comprar esta câmara e com sua graça tornou esta viagem um marco em nossas vidas. Graças à querida Andréa que nos acompanhou em todos esses passos. Graças a este filmador-amador, arqueólogo também de imagens e à vaga ideia em 1994 de escrever alguma coisa sobre a família. Graças a meu filho Ricardo, inquieto em saber mais sobre essa história. Graças ao meu filho Bernardo que ficou ontem dezesseis horas lutando com um computador à lenha, com programas que não funcionavam como deveriam e, finalmente, à meia-noite, conseguiu terminar a edição deste vídeo precioso. Foi dele também a ideia de armazenar o vídeo no youtube.
 
Em um dos mais belos textos da Psicanálise, chamado A Transitoriedade, Freud relata um passeio que fez por uma rica paisagem, num dia de verão, em companhia de um amigo taciturno, um poeta jovem já famoso na época, e que admirava a beleza do cenário que os rodeava, porém não se alegrava com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Então, Freud responde:

 
“Se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá menos formosa por isso. Tampouco posso compreender por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam ser depreciadas por sua limitação no tempo. Talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos se reduzam a pó, ou que nos suceda uma raça de homens que não mais entenda as obras de nossos poetas e pensadores, ou que sobrevenha uma era geológica em que os seres vivos deixem de existir sobre a terra; mas se o valor de tudo quanto é belo e perfeito é determinado somente por seu significado para a nossa vida emocional, não precisa sobreviver a ela, e portanto independe da duração absoluta.”
Sigmund Freud in A Transitoriedade (1916) in Obras Completas, volume 12. São Paulo: Cia. das Letras, 2010, pp. 149.

 
Cervara floresce agora para várias noites. Nesta montanha, neste rio, neste céu, nossa montanha, nosso rio, nosso céu. 

domingo, 4 de março de 2012

CERVO

Um cervo do Parque Nacional de Abruzzo.

Nesses livros de batizados, em primeiro lugar vinha escrito, em cima dos nomes, o lugar onde viviam. E ali está Cervara. A casa de Cervara. Por que este nome Cervara? De onde vem esse nome? Provavelmente, tratava-se de uma região onde se caçavam muitos cervos – daí que esta região de Rosola, em Zocca, próxima ao rio Panaro, este pedaço da montanha era conhecida como a região dos cervos, cervara. Pode ser que essa região fosse uma espécie de reserva de caça dos antigos senhores feudais. Em Rosola, há um antigo castelo conhecido antigamente como Castelo da Rosa. Conta-se que em 1398, na metade do século XIV, era proprietário dele os senhores Lancillotto e Ettore Montecuccioli. Esta hipótese sobre o cervo e sobre a reserva de caça se baseia na leitura sobre a origem histórica de outra Cervara, localizada em Ascoli Piceno, na região Marche [em português, Marcas]. Pois bem, ali neste pedaço de montanha de Rosola, à beira do rio Panaro, foi construída uma casa, conhecida como a casa de Cervara. A casa mais antiga desta família Ferrari.

sábado, 3 de março de 2012

CERVARA

O livro dos batizados da Igreja de San Leonardo em Zocca, Itália. É o documento mais antigo de nossa família. Ali estão Marco Giovanni Ferrari, Giambattista Ferrari e Cervara.

O documento mais antigo de nossa família foi encontrado pelos primos Marino e Ester Ferrari. Eles percorreram todas as igrejas da região de Zocca à procura da certidão de nascimento do pai de Marino, Luigi, irmão de Mario, e do avô de Luigi, Valentino Ferrari. Ester, uma pesquisadora admirável e incansável, chegou a fazer um bordado da árvore genealógica de sua família e a de Marino, colocando nas flores e frutos desta árvore seus filhos e netos. Quando estivemos na Itália em 1994, Marino e Ester nos receberam como filhos em sua casa, nos hospedaram, cuidaram de nós, e nos deram de presente toda a pesquisa que tinham feito, inclusive nos levaram a todos os lugares em que a história da família aconteceu. Este livro que agora se escreve é também uma carta de amor e agradecimento a Marino e a Ester Ferrari, in memoriam.

Na Itália antes de ser Itália, não havia cartórios de registros civis. Quem fazia essa função era a Igreja Católica. Em cada paróquia havia um livro de registro dos nascimentos e dos batismos, bem como de falecimentos. Encontrar um registro de nascimento nestes livros não é tarefa fácil. Em primeiro lugar, é preciso descobrir em que região aconteceu o nascimento. Mais difícil ainda é encontrar o ano de nascimento. Os livros estão muito mal conservados, com mofo, páginas coladas umas nas outras, a letra do escrivão do padre muito clara algumas vezes, totalmente confusa em outras, ou seja, uma tarefa em que se pode levar muitos anos para conseguir ou não uma pequena informação.

Marino e Ester foram à procura de nossos antepassados. E com um desejo, uma paixão maravilhosa, de paróquia em paróquia, de povoado em povoado, abrindo livros muito antigos, encontrando padres muito prestativos em alguns lugares, outros nem tanto, conseguindo ler alguns livros, outros de uma dificuldade quase impossível devido ao estado de conservação, em meio ao pó e a várias gripes pelo caminho, muito cansaço, muitas viagens perdidas, frustradas, eis que um dia eles encontraram algo muito maior do que imaginaram encontrar.

Foi na igreja de San Leonardo, em Zocca, através da ajuda do padre Sérgio, do Santuário della Verucchia de Zocca. Lá, no livro dos batizados, no Libro Battesati Rosola, no livro número 339, eles encontraram Marco Giovanni Ferrari e encontraram Giambattista Ferrari. Mais: eles encontraram Cervara.